ARQUIVO FOTOGRÁFICO
MEMÓRIAS DE UM REPÓRTER NA EUROPA
SEBASTIÃO BREGUEZ, CORESPONDENTE ESTRANGEIRO EM PARIS (1980-1990).
(JORNAL DO BRASIL, RÁDIO NEDERLAND, Hilversum, Holanda, RÁDIO INTERNATIONAL DE FRANCE, Paris, França).
VERBETE NO DICIONÁRIO DA IMPRENSA MINEIRA:
SEBASTIÃO GERALDO BREGUEZ – Registro Profissional de Jornalista Nº 2262.
Nasceu 06/01/1953 em Rio Casca, na Zona da Mata Mineira. Fez o Curso de Comunicação Social na UFMG (1978) e Mestrado e Doutorado em Comunicação com o célebre Abrahan Moles, um dos papas da Comunicação, em Estrasburgo, França (1980-83).
BREGUEZ NA UNESCO, PARIS, FRANÇA
COM O PRESIDENTE DE PORTUGAL, RAMALHO EANES
COM O PRESIDENTE DO CONSELHO DE EUROPA, MARCELINO OREGA, ESTRASBURGO, FRANÇA
COM PETER DANKS, PRESIDENTE DO PARLAMENTO EUROPEU
BREGUEZ EM PALESTRA NA UNIVERSIDADE DO MINHO, BRAGA, PORTUGAL
NO CONSELHO DE EUROPA, ESTRASBURGO
NA CAPADOCIA, NA TURQUIA CENTRAL
NO MARROCOS
EM SANTIAGO DE COMPOSTELA, ESPANHA
COM PEDRO BIAL
NA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, PORTUGAL
EM NANCY, NA LORRAINE, FRANÇA
EM MOSCOU, RUSSSIA
EM BUENOS AIRES, ARGENTINA
NO EGITO, CIDADE DO CAIRO
NA ALEMANHA, CIDADE DE GUTEMBERG
ENTREVISTANDO LEONEL JOSPIN, PRIMEIRO MINISTRO, FRANÇA
PRESIDENTE MITERRAND, DA FRANÇA, NO CONSELHO DA EUROPA
NA ILHA DE PÁSCOA
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terça-feira, 7 de junho de 2016
MEMÓRIAS DE UM REPÓRTER NA EUROPA - ARQUIVO FOTOGRÁFICO
RADIO FAVELA FM 104
http://www.igutenberg.org/radiofavela25.html
Instituto Gutenberg
Boletim Nº 25 Série eletrônica
FAVELA FM 104.5
Uma experiência de rádio comunitária em Belo Horizonte
Sebastião Geraldo Breguêz
NA mídia sempre foi porta-voz das elites por excelência em toda a história da humanidade nos quatro cantos do planeta. Ela molda a consciência dos povos segundo os interesses políticos e econômicos de cada época. Ela integra os aparelhos ideológicos do Estado, daí ser denominada Quarto Poder ( ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário ). No Brasil, não podia ser diferente. País do Terceiro Mundo, que desponta com um potencial econômico no mundo das grandes potências, é cheio de contradições e desníveis sociais, econômicos e culturais.
A mídia brasileira – impressa, radiofônica, televisiva – enfoca sua produção para os centros urbanos abastados e tem programação elitista. Pois os empresários da mídia querem é faturar e cada vez mais. Os problemas e carências da classes sociais menos favorecidas são esquecidos da mídia e do poder. As elites dominantes, por sua vez, se mostraram ineficientes na resolução dos grandes problemas urbanos, como superpopulação, saúde, habitação, educação, lazer , segurança e cultura. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista, no primeiro semestre deste ano, chegou a dizer que o Estado brasileiro só tem condições de administrar o país para 40 milhões de habitantes – os outros 120 milhões estão completamente excluídos.
É neste contexto econômico, social, cultural e político que aparecem experiências revolucionárias e inovadoras na mídia. As classes marginalizadas e excluídas se organizam por si próprias e criam a sua própria mídia. É o caso da RÁDIO FAVELA FM 104.5, criada numa favela de Belo Horizonte, na década de 80, para ser porta-voz da população carente do local, que vive em condições precárias de urbanização, saúde, saneamento, educação, cultura e segurança. Hoje, com o trabalho da rádio comunitária, as autoridades passam a investir no local. O autor deste trabalho presenciou, nas últimas eleições, como os candidatos desfilaram bem vestidos e em carros importados nas estreitas ruas da favela de Nossa Senhora de Fátima em busca de votos. Abraçaram crianças desnutridas e cheia de vermes ( na expressão do fundador da emissora, Misael Avelino dos Santos, "crianças com aquário na barriga" ), deram entrevistas na FAVELA FM 104.5 pedindo votos e prometendo ajudar a população. É desta experiência que trata este trabalho.
O presente trabalho é resultado de apontamentos de pesquisa realizado na favela Nossa Senhora de Fátima, que integra outras 11 do bairro Serra de Belo Horizonte, em meados de 1998, onde está acontecendo uma das mais fascinantes experiências de rádio comunitária no Brasil: a RADIO FAVELA FM 104.5. O autor acompanhou de perto o trabalho da rádio por quase dois meses, fez entrevistas com a equipe da rádio, com moradores da favela e ouvintes de várias regiões de Belo Horizonte. A Favela FM já ganhou dois prêmios da ONU, que reconheceu seu trabalho social contra as drogas, além de medalhas e comendas estaduais e municipais. Em agosto último, foi a única rádio brasileira que participou de Congresso Mundial de Rádios Comunitárias em Milão, na Itália. O Sindicato de Jornalistas da Alemanha considera a experiência da Favela FM como uma revolução na mídia do Terceiro Mundo. Trata-se de uma emissora criada por favelados, em 1981, com a ajuda da Igreja Católica e da associação de moradores, com o objetivo de atender as necessidades da localidade, principalmente, os problemas de segurança e de drogas. Ela se situa numa região que é responsável por cerca de 25% dos homicídios que acontecem em Belo Horizonte e pela maior taxa de crescimento demográfico, com grande número de crianças. O sucesso foi grande e a rádio se transformou na terceira maior audiência de Belo Horizonte. Com uma programação musical variada, um jornalismo realista e com denúncias, a Favela FM conquistou a confiança dos ouvintes.
HISTÓRIA
No final do regime militar, em 1981, o tráfico de drogas começa a tomar conta das favelas brasileiras, que normalmente são situadas em morros. Por isto, são regiões escolhidas pelos traficantes, que ali se instalam e passam a comandar suas operações. Por ter traçado urbano irregular, praticamente sem ruas, e com dificuldades de acesso, a polícia tem dificuldade de ter acesso ao local. O que dá segurança à Máfia da Droga. A situação não é diferente em Belo Horizonte. E um dos locais escolhidos pelo tráfico é o morro da Serra, onde está a favela Nossa Senhora de Fátima. Mas lá se encontram um grupo de jovens que organizam uma 'cultura de resistência' contra a droga. A missão deles é difícil: barrar o avanço das drogas nas vilas e retirar a juventude da marginalidade. Com os equipamentos usados para tocar música em fins de semana, 50 rapazes criam a 104.5 FM, Rádio Favela. Hoje, dezessete anos depois, a rádio continua viva, apesar de várias tentativas de desarticulação. Abandonou a imagem de uma 'rádio de favela' para o imponente nome de Rádio Comunitária. Alguns dos fundadores da emissora continuam na equipe até hoje, lutando pelo resgate da cidadania dos marginalizados moradores da favela. Comemoram o sucesso do empreendimento - terceira audiência numa cidade do porte de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, onde a população é universitária, crítica e exigente na escolha de sua rádio de preferência. Também foram eficazes os programas antidrogas e pró-estudo - pois eles também fazem a distribuição gratuita de material escolar ( livros, cadernos e lápis ) para os estudantes pobres das favelas. Este trabalho, entretanto, não foi só coroado de conquistas, mas também de perdas. Da turma inicial, poucos restam. Muitos se envolveram profundamente com o tráfico de drogas, outros foram assassinados em brigas, alguns mortos pela polícia ou simplesmente desapareceram. Hoje, o trabalho continua e há apoio de sindicatos, sociedades filantrópicas, empresas e particulares.
REPRESSÃO
Embora o regime militar, com o seu aparelho repressivo, tenha acabado, existem os problemas com as leis brasileiras de Telecomunicações. A Rádio Favela não tem concessão oficial para funcionar e por isto já foi fechada quatro vezes e seus diretores espancados pela polícia. Hoje vigora a Lei 9.612, que entrou em vigor há pouco tempo, regulamentando as rádios comunitárias, em cujo estatuto, a Favela FM se enquadra. Mas, mesmo assim, precisa de aprovação governamental, pois senão é considerada 'pirata' e ainda pode sofrer com o Ministério das Comunicações e com a polícia. Quando foi ao ar pela primeira vez, em 1981, a Rádio Favela funcionava a bateria e pilha, em um cômodo de terra batida nos morros da Serra, bairro de Belo Horizonte. Para driblar a fiscalização do Ministério das Telecomunicações, a rádio só funcionava à noite ou nos finais de semana, quando não haveria funcionários para desativá-la. Passou por verdadeira 'peregrinação' de barracos a barracos do morro para não ser fechada pela polícia. Mas desde 1995, o líder fundador da emissora, Misael Avelino dos Santos, resolveu parar de fugir e ter uma sede fixa. Diz ele: " A nossa rádio é diferente das outras rádios 'piratas', pois faz um trabalho social, cultural e educacional. Nós não queremos ganhar dinheiro, não somos empresários, só queremos ajudar a população pobre e marginalizada dos morros. Portanto, a nossa rádio tem uma vocação social, é rádio comunitária por excelência. Trabalhamos pela dignidade e pelo reconhecimento da cidadania dos moradores dos morros. Lutamos contra o tráfico de drogas. Não podem nos prender como ladrões ou traficantes". A partir daí e com o crescimento da audiência e do reconhecimento do trabalho deles, a repressão foi diminuindo.
TRABALHO EDUCACIONAL
N o mesmo local da rádio, funciona um trabalho de reforço escolar, que atende cerca de 70crianças carentes de condição sócio-econômica precária. O objetivo não é só proporcionar uma melhor qualidade de ensino às crianças, evitando, assim, a repetência. O grande desafio é preparar os menores para ter uma outra visão de mundo e escapar das seduções 'das ruas da cidade', como as drogas, o alcoolismo, a marginalidade e a prostituição. Como a Rádio Favela foi criada para ser um espaço de luta pela cidadania dos marginalizados e também contra a droga, ela desenvolve programações culturais e de denúncia. O patrocínio começa a chegar, assim também como as doações de empresas para tal fim. Embora a rádio seja 'ilegal', porque não tem concessão aprovada pelo governo federal, a eficácia de seu trabalho social já é sentida e passa a ser a sua credencial. Daí o respeito que hoje ela tem das autoridades locais. Também há um trabalho realizado, há dezenas de anos, pelos comerciantes de Belo Horizonte para tentar resolver a questão dos 'menores de rua', aquelas crianças que, sem pai e sem mãe, descem das favelas para matar e roubar nos centros urbanos. E a Favela FM vem, justamente, preencher este espaço que faltava na cidade para resolver o problema na origem: dar condições às crianças dos morros, através de um trabalho educacional e cultural, para que tenham uma vida digna e não caiam na marginalidade. Ai está a razão da emissora não ter sido mais vítima da repressão policial e do Ministério das Comunicações. Embora não tenha a concessão, e assim esteja na 'ilegalidade', ela é aceita em função de seus resultados sociais. Mas a audiência da Favela FM não se restringe aos l60 mil habitantes das 11 vilas do Aglomerado Serra. No estúdio, um pequeno cômodo de uma casa, chegam cartas de ouvintes de toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte. A maioria dos fãs da rádio são pessoas de baixa renda, mas também há muitos ouvintes da classe média e alta da cidade. Por sua programação nada formal, com denúncias a todo instante, mas com uma programação musical com os últimos sucessos, ela está agora entre a terceira e quarta audiência de Belo Horizonte, segundo o Ibope, instituto de pesquisas que mede a audiência da mídia em todo o Brasil. Também qualquer um pode ser locutor, DJ, apresentador ou produtor. Quando não está chovendo, cerca de 80 jovens se ocupam da programação. O número diminui quando chove porque os jovens se dividem para ajudar nos desabamentos e inundações que assolam a região.
DA PROGRAMAÇÃO
O conteúdo das programações é marcado pela irreverência, com exceção do "Rosa Choque", voltado para as mulheres e comandado por Dona Mariquinha, de 70 anos. Um dos programas também de grande audiência é o 'Som Rap', animado pelo filho do diretor da rádio, o Misaelzinho, de apenas 10 anos. A rádio funciona de portas abertas e os moradores da favela podem, a qualquer momento, ocupar sua freqüência com reivindicações e recados. Assim, recebe diariamente cerca de 700 telefonemas. Depois de 17 anos no ar, a emissora já possui sua grade de programação própria, das 5h da manhã até a 1h da madrugada, graças ao revezamento de uma equipe hoje com 30 membros. O Sindicato dos Jornalistas da Alemanha considerou a experiência da rádio como 'uma revolução na mídia do Terceiro Mundo'. E o diretor, Misael Avelino dos Santos, diz que isto é devido a sua programação aberta e com uma comunicação para todos os tipos de pessoas. "Não distinguimos raça, sexo, cor, nada", diz.
Sebastião Geraldo Breguêz é professor e jornalista em Belo Horizonte, MG
Instituto Gutenberg
Boletim Nº 25 Série eletrônica
Março-Abril, 1999
Instituto Gutenberg
Boletim Nº 25 Série eletrônica
FAVELA FM 104.5
Uma experiência de rádio comunitária em Belo Horizonte
Sebastião Geraldo Breguêz
A mídia brasileira – impressa, radiofônica, televisiva – enfoca sua produção para os centros urbanos abastados e tem programação elitista. Pois os empresários da mídia querem é faturar e cada vez mais. Os problemas e carências da classes sociais menos favorecidas são esquecidos da mídia e do poder. As elites dominantes, por sua vez, se mostraram ineficientes na resolução dos grandes problemas urbanos, como superpopulação, saúde, habitação, educação, lazer , segurança e cultura. O presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista, no primeiro semestre deste ano, chegou a dizer que o Estado brasileiro só tem condições de administrar o país para 40 milhões de habitantes – os outros 120 milhões estão completamente excluídos.
É neste contexto econômico, social, cultural e político que aparecem experiências revolucionárias e inovadoras na mídia. As classes marginalizadas e excluídas se organizam por si próprias e criam a sua própria mídia. É o caso da RÁDIO FAVELA FM 104.5, criada numa favela de Belo Horizonte, na década de 80, para ser porta-voz da população carente do local, que vive em condições precárias de urbanização, saúde, saneamento, educação, cultura e segurança. Hoje, com o trabalho da rádio comunitária, as autoridades passam a investir no local. O autor deste trabalho presenciou, nas últimas eleições, como os candidatos desfilaram bem vestidos e em carros importados nas estreitas ruas da favela de Nossa Senhora de Fátima em busca de votos. Abraçaram crianças desnutridas e cheia de vermes ( na expressão do fundador da emissora, Misael Avelino dos Santos, "crianças com aquário na barriga" ), deram entrevistas na FAVELA FM 104.5 pedindo votos e prometendo ajudar a população. É desta experiência que trata este trabalho.
O presente trabalho é resultado de apontamentos de pesquisa realizado na favela Nossa Senhora de Fátima, que integra outras 11 do bairro Serra de Belo Horizonte, em meados de 1998, onde está acontecendo uma das mais fascinantes experiências de rádio comunitária no Brasil: a RADIO FAVELA FM 104.5. O autor acompanhou de perto o trabalho da rádio por quase dois meses, fez entrevistas com a equipe da rádio, com moradores da favela e ouvintes de várias regiões de Belo Horizonte. A Favela FM já ganhou dois prêmios da ONU, que reconheceu seu trabalho social contra as drogas, além de medalhas e comendas estaduais e municipais. Em agosto último, foi a única rádio brasileira que participou de Congresso Mundial de Rádios Comunitárias em Milão, na Itália. O Sindicato de Jornalistas da Alemanha considera a experiência da Favela FM como uma revolução na mídia do Terceiro Mundo. Trata-se de uma emissora criada por favelados, em 1981, com a ajuda da Igreja Católica e da associação de moradores, com o objetivo de atender as necessidades da localidade, principalmente, os problemas de segurança e de drogas. Ela se situa numa região que é responsável por cerca de 25% dos homicídios que acontecem em Belo Horizonte e pela maior taxa de crescimento demográfico, com grande número de crianças. O sucesso foi grande e a rádio se transformou na terceira maior audiência de Belo Horizonte. Com uma programação musical variada, um jornalismo realista e com denúncias, a Favela FM conquistou a confiança dos ouvintes.
Sebastião Geraldo Breguêz é professor e jornalista em Belo Horizonte, MG
Instituto Gutenberg
Boletim Nº 25 Série eletrônica
Março-Abril, 1999
COMUNICAÇÃO, FOLCLORE E GLOBALIZAÇÃO
http://igutenberg.org/breguez28.html
INSTITUTO GUTEMBERG
Comunicação, folclore e globalização
Os meios de comunicação de massa estão destruindo o folclore ou a sociedade está sendo formada por uma só cultura?1
Prof. Dr. Sebastião Breguez
A evolução gradativa e posteriormente acelerada do modo de produção capitalista a partir da Revolução Industrial provocou sérias mudanças no contexto global do século XX. De uma sociedade onde a organização social e político-econômico era artesanal, agrícola e feudal, passamos a uma sociedade cuja economia e instituições radicam essencialmente na indústria e na produção em grande escala. Essa mudança de infra-estrutura provoca, por sua vez, mudanças na super-estrutura, pois ambas estão em ampla interação, modificando toda ideologia, valores, modos de pensar, agir e sentir, modos de ver as coisas, sem falar do próprio ambiente ecológico. Foi o surgimento da Sociedade de Consumo. A Revolução Industrial iniciada na Europa e exportada para vários outros países do Mundo foi constituindo, na medida de seu desenvolvimento, fases avançadas processo industrial onde, por exemplo, hoje o mundo inteiro se integra progressivamente num mercado de consumo internacional, buscando cada vez mais enormes gamas de bens. A sociedade de consumo deu primazia ao homem consumidor e todas as classes sociais foram chamadas a consumir. Os produtos são baratos, pois são feitos em larga escala, atendendo a uma enorme variedade de consumidores com diversos “status” e poder aquisitivo. Paredes de propaganda, anúncio de jornais, rádios, televisões, cinemas, tudo a fazer a apresentação da cultura de massa e de seus produtos. Os anúncios, as relações públicas, a doutrinação, o obsoletismo planejado não são mais custos improdutivos e sim elementos básicos da produção. Essa sociedade tecnológica se caracteriza, ainda, pela automação progressiva do aparato material e intelectual que regula a produção, a distribuição e o consumo. Um aparato que se estende também às esferas tanto particulares e públicas mas suas esferas políticas, econômicas e culturais. O aparato tecnológico (no qual as ciências se converteram em fatores necessários para o processo de produção e consumo, principalmente a matemática e também a psicologia e a sociologia) alcança um grau de produtividade no trabalho que torna possível o aumento do nível de vida a uma larga escala da população que antes se considerava “não privilegiado”. Nascida nessa época, como fruto da infra-estrutura capitalista, a Cultura de Massas, reúne culturas diferentes e serve de elo de ligação entre essas culturas numa constante interação, englobando a um só golpe a cultura popular (ou folclore) e a cultura erudita.2 A Cultura popular pertence estruturalmente a uma classe social definida dentro do sistema de produção capitalista, que é o povo, com seus modos de pensar, agir e sentir e comunicar seu universo cultural. Aqueles que apenas tem acesso aos modos de produção capitalista e não posição de mando ou de influência.3 A cultura erudita, dos letrados, dos burgueses, pertence a uma classe social, também definida e caracterizada pelo modo de produção capitalista que são os proprietários dos meios de produção. Aqueles que apenas têm posição de mando e determinam os próximos rumos culturais, políticos e sociais, que por serem determinados pela infra-estrutura econômica estão sujeitos à ela4. A evolução histórica do homem sempre deu destaque a dois tipos principais de conteúdos culturais. A popular ou folclórica alicerçada num processo empírico e iletrado de acumulação de experiência e inovações transmitidas de pai a filho, de irmão a irmão, cuja transmissão é pela vivência, é oral e se baseia na proximidade. A cultura erudita, ao contrário, é alicerçada com bases letrada, em normas científicas, em relação de causa e efeito.5 Até a época de Gutenberg o patrimônio cultural da humanidade era transmitido e difundido em esferas muito estreitas e distantes uns dos outros. A cultura erudita era iniciada somente aos filhos da aristocracia e os poucos que conseguiam ter proximidade ao círculo hermético da elite. A cultura popular, ao contrário, era transmitida e era consumida pela grande maioria da população que constituíam as classes subalternas. Ao lado da medicina clássica, dos proprietários dos meios de produção, (os servos, os camponeses, os escravos, os trabalhadores braçais, etc). Ao lado do teatro erudito existia o teatro popular. Ao lado das manifestações literárias da elite estavam as manifestações escritas do povo. Assim por diante.6 Com a inovação da Imprensa, capitalistas interessados em ampliar sua acumulação, o modo de produção daquela época foi transformando, também, a produção cultural tendo como ideologia formar um consumidor geral sem distinção de classes. A produção em massa começou a iniciar-se também no setor de utilidades não imediatas. A cultura de massa, então foi formando subsídios para seu progresso cada vez mais espantoso. Uma cultura que reúne os símbolos, normas, valores, mitos, imagens, etc., de um universo popular e um universo erudito. Até, então esses universos culturais mantinham uma posição inter-comunicativa mas distante um do outro. Um exercia influência e pequenas mutações no patrimônio genético - cultural do outro sem que houvessem mudanças estruturais e/ou morfológicas radicais. Acontecia que fatos da vida popular eram inseridos através de obras artísticas da cultura erudita através da pesquisa, contatos e ás vezes vivência mesmo. E isso vemos em várias obras literárias de escritores antigos, músicos, pintores e escultores. Por outro lado, o simbolismo dos letrados era incorporado ao simbolismo do povo pelas influências de domínio, mando, imposição, doutrinação (o caso dos missionários cristãos ilustra bem esse exemplo). Os exemplos são muitos, mas bastaria caracterizar, neste trabalho, por exemplo, o fandango, que é uma dança dramática encontrada no Brasil, em Alagoas, e que é uma variante de velhos costumes musicados portugueses. Mesmo a literatura de cordel, que um crítico literário norte-americano disse que Jorge Amado usou para seus romances, é um tipo de comunicação escrita do povo, elaborada e adaptada de formas poéticas de portugueses e espanhóis (atualmente é muito difundido no mundo inteiro, e existe inúmeros estudos a respeito). Roger Pinon, Professor belga licenciado em filosofia germânica pela Universidade de Liége, tem uma série de trabalhos a respeito. Veja por exemplo. “El Cuento Folkórico”, Editorial Universitária de Buenos Aires, 1965. No Brasil, a região mais rica em manifestações do folclore literário é o nordeste.7 Atualmente, o processo de intercomunicação da cultura de massa não permite distinção entre cultura popular e cultura erudita. O folclore foi perdendo suas características de “vivant” assim como também a tendência é a de formação de uma sociedade unicultural. Estamos assistindo a uma aculturação do folclore e da cultura burguesa.8 O rádio, a televisão, o cinema, o jornal, as revistas, as publicações em geral, estão matando o folclore na medida em que as camadas populares têm acesso aos meios de comunicação. Na medida em que uma sociedade subdesenvolvida vai passando pelo processo de desenvolvimento e industrialização, onde as condições pré-capitalistas de existência, as estruturas sociais arcaicas, o analfabetismo, o pauperismo, a sub-higiene, a fraca alimentação, vão sendo substituídas por condições mais compatíveis com a dignidade humana.9 Por isso, diz Édison Carneiro que as manifestações coletivas do folclore são encontradas em regiões brasileiras, como por exemplo o litoral paraense, o interior da Paraíba, o Recôncavo Baiano, zonas de notório atraso econômico, de pobreza crônica do povo, de condições pré-capitalistas de existência.10 Roger Bastide 11 diz que o folclore está morrendo justamente no momento em que se tornou ciência no Ocidente. O folclore está morrendo após as transformações econômicas fundadas no modo de produção capitalista. Na França, por exemplo, o Professor Varagnac conseguiu demonstrar que o folclore foi destruído após a introdução do maquinismo na agricultura e não conforme se pensava que fosse somente o serviço militar, a escola primária, e o desenvolvimento das redes de estradas em 1850. O Folclore, então, tende a reduzir-se a grupos esparsos da população urbana como os grupos infantis e as subpopulações urbanas de favelados.12 A introdução da máquina na agricultura, a aculturação dos “mass-media”, cujo principal amigo do “folk” é o radinho de pilha, destroem a harmonia existente e impede a continuidade das manifestações populares como por exemplo, ritos como o mutirão, o boi-bumbá, as cangadas, os reisados, a medicina rústica, as advinhas, os provérbios, as crendices e superstições, a literatura de cordel, etc. Com a introdução do maquinismo no campo, novas relações de produção passam a caracterizar as estruturas sociais e econômicas e isso impõe novas ideologias. Como o folclore está situado na superestrutura da sociedade, mudando a infra-estrutura econômica, mudanças também se efetuarão na superestrutura. O trabalhador rural marginalizado pela máquina, no campo, emigra, para grandes centros urbanos onde espera e anseia por melhores condições de vida. No centro urbano, a mão-de-obra especializada caracteriza o mercado de trabalho e o homem tem que ter uma formação técnica, mínima que seja (como pintos, pedreiro, marceneiro, etc.), dentro de uma especialidade para se manter. Na medida que o trabalhador rural se insere nas novas relações de produção, vai interiorizando comportamentos “dos civilizados” e vai abandonando suas formas rústicas de pensar, agir e sentir, vai se “civilizando” embora isso demande tempo.13 Desde 1957, McLuhan se referia a um folclore de laboratório. Para ele, a nossa cultura é totalmente uma cultura de laboratório. É programada por técnicos da publicidade, do rádio, da televisão, do cinema, do jornal, da universidade, dos departamentos de psicologia social. Após elaborada, a cultura de massa é posta ao consumo, a circulação (observando que ela é elaborada em função de infra-estrutura capitalista) para as camadas sociais que existem na estrutura que lhe serviu de ventre. A cultura de massa, então, para se firmar, se serve de mecanismos diversos de controle social seja na padronização dos gostos seja na produção em série de produtos baratos que são impostos à compra pelo consumidor ideal. Portanto, para McLuhan, o folclore atual, assim como toda cultura, é fruto de laboratório, e não aquela forma “vivant” de que nos fala Albert Marinus, folclorista belga,14 que caracterizava as comunidades aldeãs antes de Gutenberg. A indústria do disco promoveu a massificação das obras de Beethoven, Chopin, Wagner, Mozart, Straus ou Schubert, para não citar outros. A indústria do livro promoveu a produção em massa de Homero, Dante, Shakespeare, Voltaire, Dumas, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Jorge Amado e outros. A “ofsett” permite a produção em milhares de exemplares de quadros de Dali, Picasso, Da Vinci, Monet, Casanova, Renoir e outros. A televisão pega isso tudo e revoluciona ainda mais: Obras artísticas, musicais e teatrais estão diariamente pelos programas de televisão e cinema.15O folclore está se fundindo na cultura de massa? A sociedade está sendo formada por uma só cultura? Ou será que o folclore é fruto da estratificação social e da desigualdade na difusão das conquistas culturais da humanidade? O folclore tem uma função social e é questão muito importante saber porque o povo faz o folclore e por que se realiza nele. Acredito que aí chegaremos ao ponto em que se fundamenta, se estrutura as diferenças sociais, econômicas e políticas que dividem os homens. Sebastião Breguez é professor e jornalista em Belo Horizonte, MG.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) O conceito de cultura que adotamos neste trabalho é o mesmo que consta no “Dicionário Filosófico Abreviado, de M. Rosental e P. Iudin, Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1950, que diz o seguinte: “Cultura - Conjunto dos valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história. A cultura é um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiências de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura e arte, e instituições que lhes correspondem. Em um sentido restrito, compreende-se sob o termo cultura, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção dos bens materiais historicamente determinado. Assim, entende-se por cultura, o nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade na instrução, na ciência, na literatura, na arte, na filosofia, na moral, etc., e as instituições correspondentes. Entre os índices mais importantes do nível cultural, e em determinada etapa histórica, é preciso notar o grau de utilização dos aperfeiçoamentos técnicos e dos desenvolvimentos científicos na produção social, o nível cultural e técnico dos produtores dos bens materiais, assim como o grau de difusão da instrução da literatura e das artes entre a população” (pág. 104). Segundo Édison Carneiro, (em Dinâmica do Folclore, Editora Civilização Brasileira, 1965) por folclore entende-se um conjunto de modos de sentir, pensar e agir peculiares às camadas populares das sociedades civilizadas e que alguns folcloristas estendem o campo do folclore a todas as sociedades, até mesmo as primitivas. Diz ainda que a existência de graus diversos da mesma cultura é necessária para caracterizar o fenômeno.
(2) José Marques de Melo num artigo publicado na rev. VOZES (outubro de 1969, ano 63, nº 10) diz que a cultura de massas atua como veículo de interação entre a cultura clássica e a cultura popular estimulando o intercâmbio simbólico entre elas, e, ao mesmo tempo, extraindo de ambas códigos e elementos místicos que incorpora ao seu próprio acervo e os retribui sob a forma de novas influências”. A evolução histórica do homem sempre deu destaque a dois pólos distintos de estágios culturais numa mesma sociedade cuja natureza de organização e estratificação e cuja determinação está no modo de produção determinado historicamente. (3) O folclore pertence a superestrutura da sociedade (para maiores detalhes vide livro de Édison Carneiro — “A Dinâmica do Folclore”), já citado, página 81 cuja determinação está na infra-estrutura que estabelece relações produtivas entre os homens. “Na produção social dos homens, estes estabelecem entre si determinadas relações, indispensáveis e independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um estágio de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade daquelas relações de produção constituiu a estrutura econômica da sociedade — verdadeira base. Sobre ela, ergue-se a superestrutura legal e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material determina o caráter geral dos processos sociais, políticos e espirituais da vida” (Karl Marx, Prefácio de “CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DE ECONOMIA POLÍTICA”, in Marx-Engels, OBRAS ESCOLHIDAS, Sigla XXI). (4) Antônio Gramsci (“Os Intelectuais e formação da Cultura”, Editora Civilização Brasileira, 1968) diz: “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o empresário capitalista cria consigo e técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. Deve-se notar o fato de que o empresário representa uma elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente a técnica...” (5) “Sociologicamente, a cultura clássica e a cultura popular situam-se em pólos extremos. A primeira é uma cultura própria das elites, dos grupos privilegiados que detêm o poder uma sociedade, ou melhor as classes dominantes. A segunda é uma cultura peculiar à grande massa populacional que constitui o pólo dos dominadores na estrutura da organização social” (José Marques de Melo, “Comunicação, Cultura de Massas, Cultura Popular” in Revista VOZES, já citado. Édison Carneiro, em “Sabedoria Popular do Brasil” diz que o campo do folclore se estende a todas as manifestações da vida popular como o traje, a comida, a habitação, as artes domésticas, as crendices, os jogos, as danças, as representações, a poesia anônima, o linguajar, revela a Existência de todo um sistema de sentir, pensar e agir, que difere essencialmente do sistema erudito, oficial, predominante nas sociedades de tipo ocidental”. E tal sistema reflete as diferenças de classes sociais (de educação, e de cultura) que divide os homens. (6) Existia e ainda existe. Ainda existe o teatro popular com suas danças dramáticas como o Bumba-Meu-Boi, o reisado, etc. Ainda existe a medicina dos excretos. Ainda existe a literatura de cordel. Ainda existem as diferenças de classes... (7) A literatura de cordel é encontrada em feiras. Em Governador Valadares, cidade que sempre recebe imigrantes nordestinos e baianos a procura de melhores condições de vida, encontramos inúmeros exposições de literatura de cordel nas praças, ruas e principalmente no Mercado Municipal. Os livretos de cordel vinham pendurados em cordas. O nome cordel é derivado de corda. É através das cordas que são feitas as suas exposições. São publicações em prosa e verso num português arcaico onde o povo transmite as suas dores e os seus risos. A literatura de cordel tem sido alvo de inúmeras depredações, principalmente de editores paulistas. Eles se apossam da forma e do conteúdo da prosa popular e publicam os livretos com o português civilizado”. “Prostituem” a riqueza do povo. (8) Essa idéia de sociedade unicultural vai de encontro com a própria organização e estruturação da sociedade, que é estratificada. Edgar Morin partindo da idéia de cultura como “complexo de símbolos, normas e imagens” encontra inúmeras culturas que penetram no indivíduo em sua vida diária. Existe, para Morin, uma cultura religiosa, uma cultura nacional, uma cultura clássica, uma cultura popular, uma cultura de massas. 9) O tradicional em folclore recebe, com o “mass-media”, uma série de impactos. E vai interiorizando formas novas, secularizadas embora o conteúdo permaneça. O folclore como tradição está morrendo, porque está se remodelando. (10) As manifestações coletivas do folclore tendem a morrer. O que caracteriza um rito como o mutirão, por exemplo, é a coesão do grupo, do povo que se utiliza dele. Na medida que as condições capitalistas de existência, ou para ser mais exato, o modo de produção capitalista é introduzido numa sociedade “folk” desagrada a coesão grupal por que estabelece novos tipos de relacionamento entre os elementos dessa comunidade. (11) Prefácio de “Arte, Folclore e subdesenvolvimento”, Souza Barros, Editora Paralelo / MEC. (12) Édison Carneiro critica essa posição de André Varagnac. Diz ele que Varagnac se negou a analisar a questão de permanência dos modos de sentir, pensar e agir que constituem o folclore. Vide observação 10. (13) Vide notas 10 e 12. Aqui em Belo Horizonte, encontramos, para nossa surpresa, em muitas favelas, comportamentos de “folk” que estão ainda bem vivos. Numa favela na Nova Suíça, por exemplo, encontramos inúmeras famílias que faziam aborto com mentrasto. A mulher, na época em que tem certeza da gravidez, toma inúmeras vezes ao dia chá de mentrasto e usa essa planta para colocar no ventre — o que muitas vezes causa uma ferida e morte da paciente. Essa mesma família tinha resquícios de comportamento indígena. Após a gravidez, o marido se sente na obrigação de ficar oito dias acamado, junto com a criança. Se não fizer isso, ele fica com uma insuportável dor de dente. Pesquisando outras favelas, encontramos o mesmo comportamento. Essas famílias são oriundas do interior de Minas Gerais e muitas delas do meio rural onde trabalhavam como meeiras com proprietários de terras que lhe cediam o terreno para que ele cultivassem. (14) É claro que as observações de McLuhan foram realizadas num país altamente industrializado onde o “mass-media” é mais influente porque o poder aquisitivo da população permite uma série consumo de produtos culturais. Muito do folclore que está aparecendo como secularização do tradicional é fruto da influência do mass-media. Entretanto, cabe observar como Édison Carneiro, que a cultura popular se nutre de desejos de bem-estar econômico e social e constitui uma forma de reivindicação social e é expressão das aspirações populares e suas expectativas frente à realidade social. Povo não é passivo frente aos meios de comunicação de massa que seriam ativos para McLuhan. (15) Cabe aqui observar que a televisão apresenta obras artísticas. Entretanto, ela as apresenta destituídas de seu valor estético original, porque esvazia totalmente a obra de arte. Mas apresenta... embora ôca.
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Boletim Nº 28 Série eletrônica
Setembro-Outubro, 1999
INSTITUTO GUTEMBERG
Comunicação, folclore e globalização
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) O conceito de cultura que adotamos neste trabalho é o mesmo que consta no “Dicionário Filosófico Abreviado, de M. Rosental e P. Iudin, Ediciones Pueblos Unidos, Montevidéu, 1950, que diz o seguinte: “Cultura - Conjunto dos valores materiais e espirituais criados pela humanidade, no curso de sua história. A cultura é um fenômeno social que representa o nível alcançado pela sociedade em determinada etapa histórica: progresso, técnica, experiências de produção e de trabalho, instrução, educação, ciência, literatura e arte, e instituições que lhes correspondem. Em um sentido restrito, compreende-se sob o termo cultura, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade que nascem e se desenvolvem à base do modo de produção dos bens materiais historicamente determinado. Assim, entende-se por cultura, o nível de desenvolvimento alcançado pela sociedade na instrução, na ciência, na literatura, na arte, na filosofia, na moral, etc., e as instituições correspondentes. Entre os índices mais importantes do nível cultural, e em determinada etapa histórica, é preciso notar o grau de utilização dos aperfeiçoamentos técnicos e dos desenvolvimentos científicos na produção social, o nível cultural e técnico dos produtores dos bens materiais, assim como o grau de difusão da instrução da literatura e das artes entre a população” (pág. 104). Segundo Édison Carneiro, (em Dinâmica do Folclore, Editora Civilização Brasileira, 1965) por folclore entende-se um conjunto de modos de sentir, pensar e agir peculiares às camadas populares das sociedades civilizadas e que alguns folcloristas estendem o campo do folclore a todas as sociedades, até mesmo as primitivas. Diz ainda que a existência de graus diversos da mesma cultura é necessária para caracterizar o fenômeno.
(2) José Marques de Melo num artigo publicado na rev. VOZES (outubro de 1969, ano 63, nº 10) diz que a cultura de massas atua como veículo de interação entre a cultura clássica e a cultura popular estimulando o intercâmbio simbólico entre elas, e, ao mesmo tempo, extraindo de ambas códigos e elementos místicos que incorpora ao seu próprio acervo e os retribui sob a forma de novas influências”. A evolução histórica do homem sempre deu destaque a dois pólos distintos de estágios culturais numa mesma sociedade cuja natureza de organização e estratificação e cuja determinação está no modo de produção determinado historicamente. (3) O folclore pertence a superestrutura da sociedade (para maiores detalhes vide livro de Édison Carneiro — “A Dinâmica do Folclore”), já citado, página 81 cuja determinação está na infra-estrutura que estabelece relações produtivas entre os homens. “Na produção social dos homens, estes estabelecem entre si determinadas relações, indispensáveis e independentes de sua vontade; estas relações de produção correspondem a um estágio de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade daquelas relações de produção constituiu a estrutura econômica da sociedade — verdadeira base. Sobre ela, ergue-se a superestrutura legal e política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material determina o caráter geral dos processos sociais, políticos e espirituais da vida” (Karl Marx, Prefácio de “CONTRIBUIÇÃO À CRÍTICA DE ECONOMIA POLÍTICA”, in Marx-Engels, OBRAS ESCOLHIDAS, Sigla XXI). (4) Antônio Gramsci (“Os Intelectuais e formação da Cultura”, Editora Civilização Brasileira, 1968) diz: “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o empresário capitalista cria consigo e técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. Deve-se notar o fato de que o empresário representa uma elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente a técnica...” (5) “Sociologicamente, a cultura clássica e a cultura popular situam-se em pólos extremos. A primeira é uma cultura própria das elites, dos grupos privilegiados que detêm o poder uma sociedade, ou melhor as classes dominantes. A segunda é uma cultura peculiar à grande massa populacional que constitui o pólo dos dominadores na estrutura da organização social” (José Marques de Melo, “Comunicação, Cultura de Massas, Cultura Popular” in Revista VOZES, já citado. Édison Carneiro, em “Sabedoria Popular do Brasil” diz que o campo do folclore se estende a todas as manifestações da vida popular como o traje, a comida, a habitação, as artes domésticas, as crendices, os jogos, as danças, as representações, a poesia anônima, o linguajar, revela a Existência de todo um sistema de sentir, pensar e agir, que difere essencialmente do sistema erudito, oficial, predominante nas sociedades de tipo ocidental”. E tal sistema reflete as diferenças de classes sociais (de educação, e de cultura) que divide os homens. (6) Existia e ainda existe. Ainda existe o teatro popular com suas danças dramáticas como o Bumba-Meu-Boi, o reisado, etc. Ainda existe a medicina dos excretos. Ainda existe a literatura de cordel. Ainda existem as diferenças de classes... (7) A literatura de cordel é encontrada em feiras. Em Governador Valadares, cidade que sempre recebe imigrantes nordestinos e baianos a procura de melhores condições de vida, encontramos inúmeros exposições de literatura de cordel nas praças, ruas e principalmente no Mercado Municipal. Os livretos de cordel vinham pendurados em cordas. O nome cordel é derivado de corda. É através das cordas que são feitas as suas exposições. São publicações em prosa e verso num português arcaico onde o povo transmite as suas dores e os seus risos. A literatura de cordel tem sido alvo de inúmeras depredações, principalmente de editores paulistas. Eles se apossam da forma e do conteúdo da prosa popular e publicam os livretos com o português civilizado”. “Prostituem” a riqueza do povo. (8) Essa idéia de sociedade unicultural vai de encontro com a própria organização e estruturação da sociedade, que é estratificada. Edgar Morin partindo da idéia de cultura como “complexo de símbolos, normas e imagens” encontra inúmeras culturas que penetram no indivíduo em sua vida diária. Existe, para Morin, uma cultura religiosa, uma cultura nacional, uma cultura clássica, uma cultura popular, uma cultura de massas. 9) O tradicional em folclore recebe, com o “mass-media”, uma série de impactos. E vai interiorizando formas novas, secularizadas embora o conteúdo permaneça. O folclore como tradição está morrendo, porque está se remodelando. (10) As manifestações coletivas do folclore tendem a morrer. O que caracteriza um rito como o mutirão, por exemplo, é a coesão do grupo, do povo que se utiliza dele. Na medida que as condições capitalistas de existência, ou para ser mais exato, o modo de produção capitalista é introduzido numa sociedade “folk” desagrada a coesão grupal por que estabelece novos tipos de relacionamento entre os elementos dessa comunidade. (11) Prefácio de “Arte, Folclore e subdesenvolvimento”, Souza Barros, Editora Paralelo / MEC. (12) Édison Carneiro critica essa posição de André Varagnac. Diz ele que Varagnac se negou a analisar a questão de permanência dos modos de sentir, pensar e agir que constituem o folclore. Vide observação 10. (13) Vide notas 10 e 12. Aqui em Belo Horizonte, encontramos, para nossa surpresa, em muitas favelas, comportamentos de “folk” que estão ainda bem vivos. Numa favela na Nova Suíça, por exemplo, encontramos inúmeras famílias que faziam aborto com mentrasto. A mulher, na época em que tem certeza da gravidez, toma inúmeras vezes ao dia chá de mentrasto e usa essa planta para colocar no ventre — o que muitas vezes causa uma ferida e morte da paciente. Essa mesma família tinha resquícios de comportamento indígena. Após a gravidez, o marido se sente na obrigação de ficar oito dias acamado, junto com a criança. Se não fizer isso, ele fica com uma insuportável dor de dente. Pesquisando outras favelas, encontramos o mesmo comportamento. Essas famílias são oriundas do interior de Minas Gerais e muitas delas do meio rural onde trabalhavam como meeiras com proprietários de terras que lhe cediam o terreno para que ele cultivassem. (14) É claro que as observações de McLuhan foram realizadas num país altamente industrializado onde o “mass-media” é mais influente porque o poder aquisitivo da população permite uma série consumo de produtos culturais. Muito do folclore que está aparecendo como secularização do tradicional é fruto da influência do mass-media. Entretanto, cabe observar como Édison Carneiro, que a cultura popular se nutre de desejos de bem-estar econômico e social e constitui uma forma de reivindicação social e é expressão das aspirações populares e suas expectativas frente à realidade social. Povo não é passivo frente aos meios de comunicação de massa que seriam ativos para McLuhan. (15) Cabe aqui observar que a televisão apresenta obras artísticas. Entretanto, ela as apresenta destituídas de seu valor estético original, porque esvazia totalmente a obra de arte. Mas apresenta... embora ôca.
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Setembro-Outubro, 1999
A SERPENTE NO ATALHO, LIVRO DE LUIZ BELTRÃO
LIVRO DE LUIZ BELTRÃO
A SERPENTE NO ATALHO
A SERPENTE NO ATALHO
Prof. Dr. Sebastião Breguez
O professor José Marques de Melo, meu companheiro das lutas acadêmicas
desde 1977, incumbiu-me de uma difícil missão de escrever para o Dicionário Crítico Luiz Beltrão uma
resenha sobre o livro A Serpente no
Atalho. Foi um grande desafio, pois, não conhecia a produção literária de
Luiz Beltrão e nem tinha o livro, esgotado. Conheci José Marques de Melo em São
Paulo, em 1977, no Congresso da SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, do qual eu participava como coordenador do Núcleo de Pesquisas das
Ciências da Comunicação. Daí surgiu um intensivo intercâmbio, inclusive, fui um
dos primeiros sócios da INTERCOM, que ele estava criando naquela época.
Marques de Melo é um incentivador, um instigador da produção científica
beltraniana. Pode-se dizer que ele – José Marques de Melo – funciona como uma serpente no atalho que tenta e seduz o
pesquisador a caminhar, a produzir e publicar suas ideias no campo científico
das Ciências das Comunicações. Aceitei o desafio e, como acostumado a lidar com
desafios, produzi o texto que segue abaixo. Guardo um afeto especial por José
Marques de Melo, pois, embora não tenha sido seu orientando em monografias
cientificas (mestrado ou doutorado) tenho nele um farol na orientação dos
problemas comunicacionais da sociedade brasileira. Ele foi o principal
discípulo das ideias plantadas de Luiz Beltrão na área da Comunicação Social e,
inclusive a Folkcomunicação.
O pernambucano Luiz de Andrade Beltrão (Olinda, 1918/Brasília, 1986) é
um intelectual produtivo de múltiplas facetas. Sua vida é um retrato de
pensador criativo, mas engajado nas questões sociais, culturais, religiosas,
éticas e morais de seu tempo. Três vertentes marcaram sua vida: a religiosa, a social
e científica. Suas obras revelam variadas incursões de um pensador brasileiro
com 20 livros publicados não só na área da Comunicação Social e Jornalismo,
passando pela Folkcomunicação, Teoria da Comunicação, mas também na Literatura
com ensaios, contos, poesias e romances. A
Serpente no Atalho (1974) é um dos seus três romances em que apresenta sua
tendência para a literatura ficcional de fundo religioso. Mostra o amor, o
sofrimento, paixões, desejos e lutas em toda a saga da humanidade.
Ficou conhecido no Brasil e Exterior por sua valiosa contribuição às
Ciências da Comunicação. Foi ele que iniciou a pesquisa acadêmica na área de
Comunicação e Jornalismo, tendo sido o primeiro doutor brasileiro na área de
Ciências da Informação e da Comunicação. Criou uma leva grande de discípulos
como José Marques de Melo e Roberto Benjamin que foram os pilares da
continuidade das pesquisas que iniciou na comunicação e na cultura.
Através dele se formou uma farta geração de professores e pesquisadores
da comunicação. Sua obra se converteu em vasta bibliografia como material
didático, difundido na sala de aula ou estocado em livros direcionados a jovens
estudantes e profissionais. Atualmente quando se escreve a história das
ciências da comunicação no Brasil, o nome de Luiz Beltrão ocupa papel
primordial de destaque como patrono, pesquisador, professor e profissional do
jornalismo, das relações públicas e do marketing. Sua contribuição
maior foi, sem dúvida, a de criar a disciplina Folkcomunicação dentro do âmbito
das Ciências da Comunicação. Uma disciplina que tem interface com a
Antropologia e a Comunicação.
Luiz
de Andrade Beltrão apareceu ao mundo em dia 8 de agosto de 1918, na cidade de
Olinda, em Pernambuco. Foram seus pais, Francisco Beltrão de Andrade Lima (o
Dr. Andrade), funcionário público durante o dia, dentista à noite e Maria
Amália Wanderley Themudo de Andrade Lima (a dona Marieta), cuidava da casa e
dos filhos. Faleceu em Brasília, em 1986. Além de professor, atuou como
jornalista, relações públicas, assessor de imprensa, professor e funcionário
público. Sua família era de tradição católica, ele recebe uma educação humanista cristã que
marca a sua vida pessoal e em sua trajetória profissional passa por
instituições católicas brasileiras e internacionais.
Chegou até a ir para o Seminário para tentar seguir a carreira de padre,
o que mostra que sua educação ficou marcada pelos valores religiosos da vida
cristã católica. Mas saiu do seminário e buscou seguir uma vida laica marcada
pelas inquietações vividas pelos intelectuais brasileiros do século XX. A vida
religiosa dentro dos muros de um convento não animou muito sua curiosidade,
intuição e capacidade para buscar desafios do livre pensar. Mas as grandes
preocupações teológicas não abandonaram suas inquietações e investigações
futuras no campo das ideias religiosas e filosóficas. Perseguiram sua vida até
o último momento.
Na verdade, Luiz Beltrão se apresenta como um novo bandeirante desbravador
de mitos que atormentam o homem do século XX. Nascido em Pernambuco, no
Nordeste brasileiro, recebe as influências socioculturais de sua região e
incorpora grandes questões nacionais ao se movimentar pelo Brasil e Exterior em
sua trajetória profissional como professor e comunicador. Foi ao mesmo tempo
pesquisador, educador e divulgador científico. Produziu conhecimento midiático ancorado
na vivência profissional. As preocupações que atormentaram sua vida
intelectual foram cunhadas em três vertentes.
A primeira é de fundo religioso e místico. Entender a criação do
Universo e o Homem na estratégia de uma força maior, inteligente que conduz
tudo a um caminho que os sábios das religiões não souberam explicar
corretamente. Principalmente os de origem cristã que deram muitas explicações,
mas de fundo passageiro sem criar uma versão científica, empírica e aceitável
pela maioria dos pensadores do mundo moderno. Daí se explica porque ele
transforma em romance o Gênesis, capítulo do Antigo Testamento, que trata da origem
do Homem e da Humanidade. Ele escreve A
Serpente no Atalho em intervalos de folga entre a vida acadêmica e pessoal.
A segunda é de fundo social. Mostra seu engajamento nas lutas sociais de
seu tempo contra o pensamento totalitário e também as injustiças sociais. É um
intelectual orgânico de que nos fala o italiano Antônio Gramsci. Um intelectual
que quer mudar o mundo e acabar com a exploração do homem pelo homem. Seu
pensamento, então, não é se aliar à elite dominante, mas de estar junto com as
classes subalternas ou dominadas na estrutura social do capitalismo. Esta
vertente está presente em suas ações pessoais e também em suas obras acadêmicas
e literárias.
A terceira é busca pela compreensão dos processos comunicacionais da
sociedade brasileira do século XX num país de território continental, mas
marcado por fortes desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas.
Inaugura e encaminha as primeiras pesquisas sobre o jornalismo impresso
(informativo, interpretativo e opinativo). Escreve sobre as Teorias da
Comunicação (europeias, americanas e outras). Analisa os processos de
comunicação da elite, que detém os meios sociais de comunicação como o jornal,
o rádio e a televisão. Mas mostra, através da Folkcomunicação, que as classes
subalternas das sociedades urbanas e rurais de todo o Brasil têm seu próprio
processo de comunicação. E que elas se mantêm presentes à sociedade oficial
através de seu próprio sistema de expressão de pensar, agir e sentir que têm
base na oralidade, na tradição e na proximidade de seus membros.
Uma das grandes inquietações de Luiz Beltrão é compreender o mistério
que envolve a vida e o aparecimento do homem na Terra. Talvez, a passagem pelo
seminário tenha sido o início de sua busca pela compreensão do mito da
existência de Deus e do homem em outro plano. A leitura da Bíblia com o Antigo
Testamento escrito em linguagem mitológica e o Novo Testamento escrito em
linguagem informativa e simbólica. O grande enigma teológico de todos os
tempos, que atormentou todos os sábios do cristianismo desde a Antiguidade até
hoje é entender a trajetória do homem: de onde viemos e para onde vamos.
Luiz Beltrão escreveu 20 livros divididos nas áreas de sua atuação
profissional como pesquisador de Comunicação e Jornalismo, professor de Cursos
de Comunicação, profissional de jornalismo, de relações públicas e funcionário
de instituições governamentais, de jornalista profissional e de escritor. Sua
produção literária fez com que fosse o eleito para a Academia Brasiliense de
Letras o primeiro escritor para a cadeira nº 13 do Patrono Manoel Antônio de
Almeida. Com sua morte em 1986,
a vaga é hoje ocupada pelo jornalista e escritor Carlos
Chagas. Produziu ao longo de sua vida uma obra literária em que constam
ensaios, poesias, contos e romances.
Dentre seus livros publicados, estão três romances. O primeiro As Sombras do ciclone (1968), ficção sobre um padre
envolvido em adultério. Os personagens não têm nome: são o Padre, a Mulher, o
Marido, o Zelador. O livro é o romance favorito de sua família. O segundo foi A
Serpente no atalho (1974), que
começou a escrever , em 1969, em Medellín, na Colômbia, foi concluído em
Brasília no ano seguinte e só foi publicado em 1974. Este romance tem texto
insólito e revoltoso e é uma espécie de metáfora em que constrói uma versão
ficcional alternativa da história da humanidade a partir do Gênesis bíblico. O
terceiro é A Greve dos Desempregados (1984) que mostra sua preocupação
social com a situação do Brasil, da classe trabalhadora e os patrões. Aqui
constrói um país com superministro, presidente, generais e tecnocratas do
período da ditadura militar brasileira (1964-1984).
A produção literária de Luiz Beltrão não teve o
mesmo sucesso da produção científica. Seus livros mais divulgados e lidos são
os ensaios sobre a comunicação, o jornalismo, o mass-media, a teoria da
comunicação e, principalmente, a Folkcomunicação, que hoje agrega importante
grupo de pesquisa em todas as universidades brasileiras. Foram poucos os
comentários e estudos sobre a produção literária: contos, poesias e romances. A
contribuição literária não se popularizou e/ou despertou grande interesse do
público.
Os críticos quando fazem análise da obra literária,
usam como modelo, a teoria do romance trabalhada por teóricos europeus ou
norte-americanos. Ai dissecam o texto como um cadáver: analisam o estilo de
narrativa, as formas literárias usadas, o cenário, os personagens etc. Tiram
conclusões para enquadrar o texto num modelo teórico. Sobre o trabalho dos
críticos, uma vez perguntaram a Heitor Villa Lobos, músico e compositor
brasileiro, como ele criava suas obras. Ele simplesmente disse que “crio como
cago”. Ele quis dizer que o processo de criação artístico é natural e quase que
instintivo. É o caso de Luiz Beltrão em sua vida literária. Ele cria suas obras
institivamente nos momentos que aproveita os estalos criativos de sua mente.
Nada é planejado detalhadamente. Ele alimenta a imaginação e a transforma em
palavras, frases, parágrafos, enfim, páginas de texto ficcional de questões que
permeiam a sua existência desde jovem.
O seu romance A Serpente do Atalho
(1974) é uma obra ficcional sobre o livro do Gênesis do Antigo Testamento. O texto religioso, escrito em
linguagem mitológica, mostra o surgimento do homem com Adão e Eva no Paraíso,
um reino da perfeição onde não há injustiça e nem exploração do homem pelo
homem, como no mundo capitalista. Mostra a aparição da serpente, no atalho, com
a maçã, e a saída de Adão e Eva do mundo divino para construir a vida terrestre
onde tudo é aventura, emoção, sensação, instinto e paixão. A ideia de revolta
se apresenta porque a saída do Paraíso, um reino sem sofrimento, onde não há
trabalho e nem exploração, coloca o ser humano num mundo de competividade, de
muita animosidade, lutas e esforços inimagináveis.
Luiz Beltrão constrói neste romance a trajetória do Gênesis. A linguagem
ficcional aqui é marcada pelas vivencias do autor no Nordeste brasileiro. Ele
se vale de suas experiências do ambiente nordestino, de seus rios, suas matas,
florestas, seus vales, de seus bichos. Pode-se dizer que o cenário do Gênesis
apresentado no romance mostra contornos do país tropical e não da antiga e
milenar Palestina. Mostra sua capacidade de busca de saciar sua curiosidade e
inquietude pelo principal mito da Humanidade: o surgimento da espécie humana.
Mostra as vivências do autor no interior da Mata Atlântica pernambucana no seio
da natureza e das suas paisagens.
O Adão e Eva criados pela ficção beltraniana são brasileiros, mais
precisamente, nordestinos que vivem o mito em cenário tropical. Aparecem mestiçados,
morenos, vivendo na mata atlântica nordestina. As vivencias humanas de Beltrão,
suas tentações, suas angústias, no Brasil do século XX aparecem ai em sua
narrativa que busca reconstruir uma história antiga em uma modernidade
tupiniquim. A serpente também é brasileira. Pode ser uma cascavel ou uma
jararaca travestida de réptil do Oriente Médio. Lá há o deserto com noites
frias e dias quentes. As matas e florestas não existem e nem mesmo há
abundância de água de rios, lagos e cachoeiras. Aqui temos a mata atlântica com
toda a sua abundância de fauna e flora dos trópicos.
No paradigma cristão católico, Adão, o primeiro homem criado por Deus,
caiu no mundo das paixões e sensações, chamado mundo do pecado (mundo das
vivencias empíricas ou sensoriais), pois, foi seduzido pela serpente. Mas Deus
criou o segundo homem, Jesus, que enviou para a Terra no sentido de salvar a
Humanidade da esperteza do réptil. Mas Jesus, o homem perfeito, divino, foi
crucificado. Este é o grande mito que atormenta a vida de Luiz Beltrão. Jesus
era esperado pelos judeus como um Rei, um Messias humano, para criar o estado
de Israel, como um novo Paraíso.
O primeiro homem, Adão, é um ser completo. Tem os dois sexos, masculino
e feminino, é andrógino. Mas Deus cria a mulher da costela de Adão. Ai são dois
seres que têm o poder da criação de outros homens. Surge o segundo sexo
separado do homem original. A serpente aparece como símbolo da tentação por
novas experiências e a busca do conhecimento sensorial da árvore da sabedoria.
A sexualidade, em sua dualidade masculino-feminino é também um grande enigma
que já inspirou teólogos, cientistas e artistas de todos os tempos.
A serpente é outro enigma que
atormenta os pensadores de todas as religiões.
É um réptil que rasteja na terra e é símbolo da Ciência e da busca da
sabedoria pela pesquisa empírica. Ela não é positiva nem negativa. Tem o
sentido de tentação, pois, ela coloca a dúvida que é o motor de ação
investigativa das ações e dos fenômenos. Beltrão apresenta a serpente no atalho
que seduz a mulher Eva e a faz descobrir outro mundo. Ela seduz também Adão no
atalho da existência humana.
A ação do romance se constrói ai em narrativas imaginosas do autor em
torno de Adão, Eva, o filho, a maça e a serpente. O mundo se constrói e
reconstrói a partir da sedução da serpente que nem Eva e nem Adão souberam
evitar. A tentação é a curiosidade, a dúvida, a busca de novas explicações,
emoções e sensações. É o que move a humanidade na construção de novos ideais,
novos pensamentos e pesquisas científicas. A serpente sempre estará nos
esperando no atalho do caminho. Os sábios da antiguidade diziam que não se deve
matar a serpente, mas aprender a conviver com ela. Ai se consegue o elixir da
longa vida ou a quinta-essência da filosofia que é um dos temas do sábio
cristão Tomás de Aquino que foi leitura de Luiz Beltrão no seminário.
Enfim, A Serpente no Atalho é
um livro produzido por um escritor engajado que mostra suas inquietações teológicas
que permeiam sua existência desde a juventude quando frequentou o seminário
para ser padre. Escrito em linguagem clara, elegante, apresenta de forma
imaginosa o mito da criação do homem e do aparecimento da humanidade na Terra.
O autor transforma o cenário tropical cheio de verde das matas e águas doces e
salgados onde a serpente espreita Adão e Eva no atalho da vida. A revolta
expressa simbolicamente no texto, decorre da constatação de que, se o primeiro
homem não cedesse à tentação, talvez, tivéssemos hoje vivendo num mundo sem
lutas, sem medos, nem conflitos, nem desigualdades sociais. Seria o Paraíso
como imaginado pelos socialistas utópicos em que tudo é perfeito, sem
contradições ou problemas sociais ou outros.
BIBLIOGRAFIA
BELTRÃO, Luiz – A Serpente
no Atalho. Brasília: Coordenada, 1974.
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