terça-feira, 7 de junho de 2016

A SERPENTE NO ATALHO, LIVRO DE LUIZ BELTRÃO

LIVRO DE LUIZ BELTRÃO
A SERPENTE NO ATALHO

Prof. Dr. Sebastião Breguez


O professor José Marques de Melo, meu companheiro das lutas acadêmicas desde 1977, incumbiu-me de uma difícil missão de escrever para o Dicionário Crítico Luiz Beltrão uma resenha sobre o livro A Serpente no Atalho. Foi um grande desafio, pois, não conhecia a produção literária de Luiz Beltrão e nem tinha o livro, esgotado. Conheci José Marques de Melo em São Paulo, em 1977, no Congresso da SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, do qual eu participava como coordenador do Núcleo de Pesquisas das Ciências da Comunicação. Daí surgiu um intensivo intercâmbio, inclusive, fui um dos primeiros sócios da INTERCOM, que ele estava criando naquela época.

Marques de Melo é um incentivador, um instigador da produção científica beltraniana. Pode-se dizer que ele – José Marques de Melo – funciona como uma serpente no atalho que tenta e seduz o pesquisador a caminhar, a produzir e publicar suas ideias no campo científico das Ciências das Comunicações. Aceitei o desafio e, como acostumado a lidar com desafios, produzi o texto que segue abaixo. Guardo um afeto especial por José Marques de Melo, pois, embora não tenha sido seu orientando em monografias cientificas (mestrado ou doutorado) tenho nele um farol na orientação dos problemas comunicacionais da sociedade brasileira. Ele foi o principal discípulo das ideias plantadas de Luiz Beltrão na área da Comunicação Social e, inclusive a Folkcomunicação.

O pernambucano Luiz de Andrade Beltrão (Olinda, 1918/Brasília, 1986) é um intelectual produtivo de múltiplas facetas. Sua vida é um retrato de pensador criativo, mas engajado nas questões sociais, culturais, religiosas, éticas e morais de seu tempo. Três vertentes marcaram sua vida: a religiosa, a social e científica. Suas obras revelam variadas incursões de um pensador brasileiro com 20 livros publicados não só na área da Comunicação Social e Jornalismo, passando pela Folkcomunicação, Teoria da Comunicação, mas também na Literatura com ensaios, contos, poesias e romances. A Serpente no Atalho (1974) é um dos seus três romances em que apresenta sua tendência para a literatura ficcional de fundo religioso. Mostra o amor, o sofrimento, paixões, desejos e lutas em toda a saga da humanidade.

Ficou conhecido no Brasil e Exterior por sua valiosa contribuição às Ciências da Comunicação. Foi ele que iniciou a pesquisa acadêmica na área de Comunicação e Jornalismo, tendo sido o primeiro doutor brasileiro na área de Ciências da Informação e da Comunicação. Criou uma leva grande de discípulos como José Marques de Melo e Roberto Benjamin que foram os pilares da continuidade das pesquisas que iniciou na comunicação e na cultura.

Através dele se formou uma farta geração de professores e pesquisadores da comunicação. Sua obra se converteu em vasta bibliografia como material didático, difundido na sala de aula ou estocado em livros direcionados a jovens estudantes e profissionais. Atualmente quando se escreve a história das ciências da comunicação no Brasil, o nome de Luiz Beltrão ocupa papel primordial de destaque como patrono, pesquisador, professor e profissional do jornalismo, das relações públicas e do marketing. Sua contribuição maior foi, sem dúvida, a de criar a disciplina Folkcomunicação dentro do âmbito das Ciências da Comunicação. Uma disciplina que tem interface com a Antropologia e a Comunicação.

Luiz de Andrade Beltrão apareceu ao mundo em dia 8 de agosto de 1918, na cidade de Olinda, em Pernambuco. Foram seus pais, Francisco Beltrão de Andrade Lima (o Dr. Andrade), funcionário público durante o dia, dentista à noite e Maria Amália Wanderley Themudo de Andrade Lima (a dona Marieta), cuidava da casa e dos filhos. Faleceu em Brasília, em 1986. Além de professor, atuou como jornalista, relações públicas, assessor de imprensa, professor e funcionário público. Sua família era de tradição católica, ele recebe uma educação humanista cristã que marca a sua vida pessoal e em sua trajetória profissional passa por instituições católicas brasileiras e internacionais.

Chegou até a ir para o Seminário para tentar seguir a carreira de padre, o que mostra que sua educação ficou marcada pelos valores religiosos da vida cristã católica. Mas saiu do seminário e buscou seguir uma vida laica marcada pelas inquietações vividas pelos intelectuais brasileiros do século XX. A vida religiosa dentro dos muros de um convento não animou muito sua curiosidade, intuição e capacidade para buscar desafios do livre pensar. Mas as grandes preocupações teológicas não abandonaram suas inquietações e investigações futuras no campo das ideias religiosas e filosóficas. Perseguiram sua vida até o último momento.

Na verdade, Luiz Beltrão se apresenta como um novo bandeirante desbravador de mitos que atormentam o homem do século XX. Nascido em Pernambuco, no Nordeste brasileiro, recebe as influências socioculturais de sua região e incorpora grandes questões nacionais ao se movimentar pelo Brasil e Exterior em sua trajetória profissional como professor e comunicador. Foi ao mesmo tempo pesquisador, educador e divulgador científico. Produziu conhecimento midiático ancorado na vivência profissional. As preocupações que atormentaram sua vida intelectual foram cunhadas em três vertentes.

A primeira é de fundo religioso e místico. Entender a criação do Universo e o Homem na estratégia de uma força maior, inteligente que conduz tudo a um caminho que os sábios das religiões não souberam explicar corretamente. Principalmente os de origem cristã que deram muitas explicações, mas de fundo passageiro sem criar uma versão científica, empírica e aceitável pela maioria dos pensadores do mundo moderno. Daí se explica porque ele transforma em romance o Gênesis, capítulo do Antigo Testamento, que trata da origem do Homem e da Humanidade. Ele escreve A Serpente no Atalho em intervalos de folga entre a vida acadêmica e pessoal.

A segunda é de fundo social. Mostra seu engajamento nas lutas sociais de seu tempo contra o pensamento totalitário e também as injustiças sociais. É um intelectual orgânico de que nos fala o italiano Antônio Gramsci. Um intelectual que quer mudar o mundo e acabar com a exploração do homem pelo homem. Seu pensamento, então, não é se aliar à elite dominante, mas de estar junto com as classes subalternas ou dominadas na estrutura social do capitalismo. Esta vertente está presente em suas ações pessoais e também em suas obras acadêmicas e literárias.

A terceira é busca pela compreensão dos processos comunicacionais da sociedade brasileira do século XX num país de território continental, mas marcado por fortes desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas. Inaugura e encaminha as primeiras pesquisas sobre o jornalismo impresso (informativo, interpretativo e opinativo). Escreve sobre as Teorias da Comunicação (europeias, americanas e outras). Analisa os processos de comunicação da elite, que detém os meios sociais de comunicação como o jornal, o rádio e a televisão. Mas mostra, através da Folkcomunicação, que as classes subalternas das sociedades urbanas e rurais de todo o Brasil têm seu próprio processo de comunicação. E que elas se mantêm presentes à sociedade oficial através de seu próprio sistema de expressão de pensar, agir e sentir que têm base na oralidade, na tradição e na proximidade de seus membros.

Uma das grandes inquietações de Luiz Beltrão é compreender o mistério que envolve a vida e o aparecimento do homem na Terra. Talvez, a passagem pelo seminário tenha sido o início de sua busca pela compreensão do mito da existência de Deus e do homem em outro plano. A leitura da Bíblia com o Antigo Testamento escrito em linguagem mitológica e o Novo Testamento escrito em linguagem informativa e simbólica. O grande enigma teológico de todos os tempos, que atormentou todos os sábios do cristianismo desde a Antiguidade até hoje é entender a trajetória do homem: de onde viemos e para onde vamos.

Luiz Beltrão escreveu 20 livros divididos nas áreas de sua atuação profissional como pesquisador de Comunicação e Jornalismo, professor de Cursos de Comunicação, profissional de jornalismo, de relações públicas e funcionário de instituições governamentais, de jornalista profissional e de escritor. Sua produção literária fez com que fosse o eleito para a Academia Brasiliense de Letras o primeiro escritor para a cadeira nº 13 do Patrono Manoel Antônio de Almeida. Com sua morte em 1986, a vaga é hoje ocupada pelo jornalista e escritor Carlos Chagas. Produziu ao longo de sua vida uma obra literária em que constam ensaios, poesias, contos e romances.

Dentre seus livros publicados, estão três romances. O primeiro As Sombras do ciclone (1968), ficção sobre um padre envolvido em adultério. Os personagens não têm nome: são o Padre, a Mulher, o Marido, o Zelador. O livro é o romance favorito de sua família. O segundo foi A Serpente no atalho (1974), que começou a escrever , em 1969, em Medellín, na Colômbia, foi concluído em Brasília no ano seguinte e só foi publicado em 1974. Este romance tem texto insólito e revoltoso e é uma espécie de metáfora em que constrói uma versão ficcional alternativa da história da humanidade a partir do Gênesis bíblico. O terceiro é A Greve dos Desempregados (1984) que mostra sua preocupação social com a situação do Brasil, da classe trabalhadora e os patrões. Aqui constrói um país com superministro, presidente, generais e tecnocratas do período da ditadura militar brasileira (1964-1984).

A produção literária de Luiz Beltrão não teve o mesmo sucesso da produção científica. Seus livros mais divulgados e lidos são os ensaios sobre a comunicação, o jornalismo, o mass-media, a teoria da comunicação e, principalmente, a Folkcomunicação, que hoje agrega importante grupo de pesquisa em todas as universidades brasileiras. Foram poucos os comentários e estudos sobre a produção literária: contos, poesias e romances. A contribuição literária não se popularizou e/ou despertou grande interesse do público.

Os críticos quando fazem análise da obra literária, usam como modelo, a teoria do romance trabalhada por teóricos europeus ou norte-americanos. Ai dissecam o texto como um cadáver: analisam o estilo de narrativa, as formas literárias usadas, o cenário, os personagens etc. Tiram conclusões para enquadrar o texto num modelo teórico. Sobre o trabalho dos críticos, uma vez perguntaram a Heitor Villa Lobos, músico e compositor brasileiro, como ele criava suas obras. Ele simplesmente disse que “crio como cago”. Ele quis dizer que o processo de criação artístico é natural e quase que instintivo. É o caso de Luiz Beltrão em sua vida literária. Ele cria suas obras institivamente nos momentos que aproveita os estalos criativos de sua mente. Nada é planejado detalhadamente. Ele alimenta a imaginação e a transforma em palavras, frases, parágrafos, enfim, páginas de texto ficcional de questões que permeiam a sua existência desde jovem.

O seu romance A Serpente do Atalho (1974) é uma obra ficcional sobre o livro do Gênesis do Antigo Testamento. O texto religioso, escrito em linguagem mitológica, mostra o surgimento do homem com Adão e Eva no Paraíso, um reino da perfeição onde não há injustiça e nem exploração do homem pelo homem, como no mundo capitalista. Mostra a aparição da serpente, no atalho, com a maçã, e a saída de Adão e Eva do mundo divino para construir a vida terrestre onde tudo é aventura, emoção, sensação, instinto e paixão. A ideia de revolta se apresenta porque a saída do Paraíso, um reino sem sofrimento, onde não há trabalho e nem exploração, coloca o ser humano num mundo de competividade, de muita animosidade, lutas e esforços inimagináveis.

Luiz Beltrão constrói neste romance a trajetória do Gênesis. A linguagem ficcional aqui é marcada pelas vivencias do autor no Nordeste brasileiro. Ele se vale de suas experiências do ambiente nordestino, de seus rios, suas matas, florestas, seus vales, de seus bichos. Pode-se dizer que o cenário do Gênesis apresentado no romance mostra contornos do país tropical e não da antiga e milenar Palestina. Mostra sua capacidade de busca de saciar sua curiosidade e inquietude pelo principal mito da Humanidade: o surgimento da espécie humana. Mostra as vivências do autor no interior da Mata Atlântica pernambucana no seio da natureza e das suas paisagens.

O Adão e Eva criados pela ficção beltraniana são brasileiros, mais precisamente, nordestinos que vivem o mito em cenário tropical. Aparecem mestiçados, morenos, vivendo na mata atlântica nordestina. As vivencias humanas de Beltrão, suas tentações, suas angústias, no Brasil do século XX aparecem ai em sua narrativa que busca reconstruir uma história antiga em uma modernidade tupiniquim. A serpente também é brasileira. Pode ser uma cascavel ou uma jararaca travestida de réptil do Oriente Médio. Lá há o deserto com noites frias e dias quentes. As matas e florestas não existem e nem mesmo há abundância de água de rios, lagos e cachoeiras. Aqui temos a mata atlântica com toda a sua abundância de fauna e flora dos trópicos.

No paradigma cristão católico, Adão, o primeiro homem criado por Deus, caiu no mundo das paixões e sensações, chamado mundo do pecado (mundo das vivencias empíricas ou sensoriais), pois, foi seduzido pela serpente. Mas Deus criou o segundo homem, Jesus, que enviou para a Terra no sentido de salvar a Humanidade da esperteza do réptil. Mas Jesus, o homem perfeito, divino, foi crucificado. Este é o grande mito que atormenta a vida de Luiz Beltrão. Jesus era esperado pelos judeus como um Rei, um Messias humano, para criar o estado de Israel, como um novo Paraíso.

O primeiro homem, Adão, é um ser completo. Tem os dois sexos, masculino e feminino, é andrógino. Mas Deus cria a mulher da costela de Adão. Ai são dois seres que têm o poder da criação de outros homens. Surge o segundo sexo separado do homem original. A serpente aparece como símbolo da tentação por novas experiências e a busca do conhecimento sensorial da árvore da sabedoria. A sexualidade, em sua dualidade masculino-feminino é também um grande enigma que já inspirou teólogos, cientistas e artistas de todos os tempos.

 A serpente é outro enigma que atormenta os pensadores de todas as religiões.  É um réptil que rasteja na terra e é símbolo da Ciência e da busca da sabedoria pela pesquisa empírica. Ela não é positiva nem negativa. Tem o sentido de tentação, pois, ela coloca a dúvida que é o motor de ação investigativa das ações e dos fenômenos. Beltrão apresenta a serpente no atalho que seduz a mulher Eva e a faz descobrir outro mundo. Ela seduz também Adão no atalho da existência humana.

A ação do romance se constrói ai em narrativas imaginosas do autor em torno de Adão, Eva, o filho, a maça e a serpente. O mundo se constrói e reconstrói a partir da sedução da serpente que nem Eva e nem Adão souberam evitar. A tentação é a curiosidade, a dúvida, a busca de novas explicações, emoções e sensações. É o que move a humanidade na construção de novos ideais, novos pensamentos e pesquisas científicas. A serpente sempre estará nos esperando no atalho do caminho. Os sábios da antiguidade diziam que não se deve matar a serpente, mas aprender a conviver com ela. Ai se consegue o elixir da longa vida ou a quinta-essência da filosofia que é um dos temas do sábio cristão Tomás de Aquino que foi leitura de Luiz Beltrão no seminário.

Enfim, A Serpente no Atalho é um livro produzido por um escritor engajado que mostra suas inquietações teológicas que permeiam sua existência desde a juventude quando frequentou o seminário para ser padre. Escrito em linguagem clara, elegante, apresenta de forma imaginosa o mito da criação do homem e do aparecimento da humanidade na Terra. O autor transforma o cenário tropical cheio de verde das matas e águas doces e salgados onde a serpente espreita Adão e Eva no atalho da vida. A revolta expressa simbolicamente no texto, decorre da constatação de que, se o primeiro homem não cedesse à tentação, talvez, tivéssemos hoje vivendo num mundo sem lutas, sem medos, nem conflitos, nem desigualdades sociais. Seria o Paraíso como imaginado pelos socialistas utópicos em que tudo é perfeito, sem contradições ou problemas sociais ou outros.

BIBLIOGRAFIA

BELTRÃO, Luiz – A Serpente no Atalho. Brasília: Coordenada, 1974.

 

 

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