A SERPENTE NO ATALHO
Prof. Dr. Sebastião Breguez
O professor José Marques de Melo, meu companheiro das lutas acadêmicas
desde 1977, incumbiu-me de uma difícil missão de escrever para o Dicionário Crítico Luiz Beltrão uma
resenha sobre o livro A Serpente no
Atalho. Foi um grande desafio, pois, não conhecia a produção literária de
Luiz Beltrão e nem tinha o livro, esgotado. Conheci José Marques de Melo em São
Paulo, em 1977, no Congresso da SBPC-Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, do qual eu participava como coordenador do Núcleo de Pesquisas das
Ciências da Comunicação. Daí surgiu um intensivo intercâmbio, inclusive, fui um
dos primeiros sócios da INTERCOM, que ele estava criando naquela época.
Marques de Melo é um incentivador, um instigador da produção científica
beltraniana. Pode-se dizer que ele – José Marques de Melo – funciona como uma serpente no atalho que tenta e seduz o
pesquisador a caminhar, a produzir e publicar suas ideias no campo científico
das Ciências das Comunicações. Aceitei o desafio e, como acostumado a lidar com
desafios, produzi o texto que segue abaixo. Guardo um afeto especial por José
Marques de Melo, pois, embora não tenha sido seu orientando em monografias
cientificas (mestrado ou doutorado) tenho nele um farol na orientação dos
problemas comunicacionais da sociedade brasileira. Ele foi o principal
discípulo das ideias plantadas de Luiz Beltrão na área da Comunicação Social e,
inclusive a Folkcomunicação.
O pernambucano Luiz de Andrade Beltrão (Olinda, 1918/Brasília, 1986) é
um intelectual produtivo de múltiplas facetas. Sua vida é um retrato de
pensador criativo, mas engajado nas questões sociais, culturais, religiosas,
éticas e morais de seu tempo. Três vertentes marcaram sua vida: a religiosa, a social
e científica. Suas obras revelam variadas incursões de um pensador brasileiro
com 20 livros publicados não só na área da Comunicação Social e Jornalismo,
passando pela Folkcomunicação, Teoria da Comunicação, mas também na Literatura
com ensaios, contos, poesias e romances. A
Serpente no Atalho (1974) é um dos seus três romances em que apresenta sua
tendência para a literatura ficcional de fundo religioso. Mostra o amor, o
sofrimento, paixões, desejos e lutas em toda a saga da humanidade.
Ficou conhecido no Brasil e Exterior por sua valiosa contribuição às
Ciências da Comunicação. Foi ele que iniciou a pesquisa acadêmica na área de
Comunicação e Jornalismo, tendo sido o primeiro doutor brasileiro na área de
Ciências da Informação e da Comunicação. Criou uma leva grande de discípulos
como José Marques de Melo e Roberto Benjamin que foram os pilares da
continuidade das pesquisas que iniciou na comunicação e na cultura.
Através dele se formou uma farta geração de professores e pesquisadores
da comunicação. Sua obra se converteu em vasta bibliografia como material
didático, difundido na sala de aula ou estocado em livros direcionados a jovens
estudantes e profissionais. Atualmente quando se escreve a história das
ciências da comunicação no Brasil, o nome de Luiz Beltrão ocupa papel
primordial de destaque como patrono, pesquisador, professor e profissional do
jornalismo, das relações públicas e do marketing. Sua contribuição
maior foi, sem dúvida, a de criar a disciplina Folkcomunicação dentro do âmbito
das Ciências da Comunicação. Uma disciplina que tem interface com a
Antropologia e a Comunicação.
Luiz
de Andrade Beltrão apareceu ao mundo em dia 8 de agosto de 1918, na cidade de
Olinda, em Pernambuco. Foram seus pais, Francisco Beltrão de Andrade Lima (o
Dr. Andrade), funcionário público durante o dia, dentista à noite e Maria
Amália Wanderley Themudo de Andrade Lima (a dona Marieta), cuidava da casa e
dos filhos. Faleceu em Brasília, em 1986. Além de professor, atuou como
jornalista, relações públicas, assessor de imprensa, professor e funcionário
público. Sua família era de tradição católica, ele recebe uma educação humanista cristã que
marca a sua vida pessoal e em sua trajetória profissional passa por
instituições católicas brasileiras e internacionais.
Chegou até a ir para o Seminário para tentar seguir a carreira de padre,
o que mostra que sua educação ficou marcada pelos valores religiosos da vida
cristã católica. Mas saiu do seminário e buscou seguir uma vida laica marcada
pelas inquietações vividas pelos intelectuais brasileiros do século XX. A vida
religiosa dentro dos muros de um convento não animou muito sua curiosidade,
intuição e capacidade para buscar desafios do livre pensar. Mas as grandes
preocupações teológicas não abandonaram suas inquietações e investigações
futuras no campo das ideias religiosas e filosóficas. Perseguiram sua vida até
o último momento.
Na verdade, Luiz Beltrão se apresenta como um novo bandeirante desbravador
de mitos que atormentam o homem do século XX. Nascido em Pernambuco, no
Nordeste brasileiro, recebe as influências socioculturais de sua região e
incorpora grandes questões nacionais ao se movimentar pelo Brasil e Exterior em
sua trajetória profissional como professor e comunicador. Foi ao mesmo tempo
pesquisador, educador e divulgador científico. Produziu conhecimento midiático ancorado
na vivência profissional. As preocupações que atormentaram sua vida
intelectual foram cunhadas em três vertentes.
A primeira é de fundo religioso e místico. Entender a criação do
Universo e o Homem na estratégia de uma força maior, inteligente que conduz
tudo a um caminho que os sábios das religiões não souberam explicar
corretamente. Principalmente os de origem cristã que deram muitas explicações,
mas de fundo passageiro sem criar uma versão científica, empírica e aceitável
pela maioria dos pensadores do mundo moderno. Daí se explica porque ele
transforma em romance o Gênesis, capítulo do Antigo Testamento, que trata da origem
do Homem e da Humanidade. Ele escreve A
Serpente no Atalho em intervalos de folga entre a vida acadêmica e pessoal.
A segunda é de fundo social. Mostra seu engajamento nas lutas sociais de
seu tempo contra o pensamento totalitário e também as injustiças sociais. É um
intelectual orgânico de que nos fala o italiano Antônio Gramsci. Um intelectual
que quer mudar o mundo e acabar com a exploração do homem pelo homem. Seu
pensamento, então, não é se aliar à elite dominante, mas de estar junto com as
classes subalternas ou dominadas na estrutura social do capitalismo. Esta
vertente está presente em suas ações pessoais e também em suas obras acadêmicas
e literárias.
A terceira é busca pela compreensão dos processos comunicacionais da
sociedade brasileira do século XX num país de território continental, mas
marcado por fortes desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas.
Inaugura e encaminha as primeiras pesquisas sobre o jornalismo impresso
(informativo, interpretativo e opinativo). Escreve sobre as Teorias da
Comunicação (europeias, americanas e outras). Analisa os processos de
comunicação da elite, que detém os meios sociais de comunicação como o jornal,
o rádio e a televisão. Mas mostra, através da Folkcomunicação, que as classes
subalternas das sociedades urbanas e rurais de todo o Brasil têm seu próprio
processo de comunicação. E que elas se mantêm presentes à sociedade oficial
através de seu próprio sistema de expressão de pensar, agir e sentir que têm
base na oralidade, na tradição e na proximidade de seus membros.
Uma das grandes inquietações de Luiz Beltrão é compreender o mistério
que envolve a vida e o aparecimento do homem na Terra. Talvez, a passagem pelo
seminário tenha sido o início de sua busca pela compreensão do mito da
existência de Deus e do homem em outro plano. A leitura da Bíblia com o Antigo
Testamento escrito em linguagem mitológica e o Novo Testamento escrito em
linguagem informativa e simbólica. O grande enigma teológico de todos os
tempos, que atormentou todos os sábios do cristianismo desde a Antiguidade até
hoje é entender a trajetória do homem: de onde viemos e para onde vamos.
Luiz Beltrão escreveu 20 livros divididos nas áreas de sua atuação
profissional como pesquisador de Comunicação e Jornalismo, professor de Cursos
de Comunicação, profissional de jornalismo, de relações públicas e funcionário
de instituições governamentais, de jornalista profissional e de escritor. Sua
produção literária fez com que fosse o eleito para a Academia Brasiliense de
Letras o primeiro escritor para a cadeira nº 13 do Patrono Manoel Antônio de
Almeida. Com sua morte em 1986,
a vaga é hoje ocupada pelo jornalista e escritor Carlos
Chagas. Produziu ao longo de sua vida uma obra literária em que constam
ensaios, poesias, contos e romances.
Dentre seus livros publicados, estão três romances. O primeiro As Sombras do ciclone (1968), ficção sobre um padre
envolvido em adultério. Os personagens não têm nome: são o Padre, a Mulher, o
Marido, o Zelador. O livro é o romance favorito de sua família. O segundo foi A
Serpente no atalho (1974), que
começou a escrever , em 1969, em Medellín, na Colômbia, foi concluído em
Brasília no ano seguinte e só foi publicado em 1974. Este romance tem texto
insólito e revoltoso e é uma espécie de metáfora em que constrói uma versão
ficcional alternativa da história da humanidade a partir do Gênesis bíblico. O
terceiro é A Greve dos Desempregados (1984) que mostra sua preocupação
social com a situação do Brasil, da classe trabalhadora e os patrões. Aqui
constrói um país com superministro, presidente, generais e tecnocratas do
período da ditadura militar brasileira (1964-1984).
A produção literária de Luiz Beltrão não teve o
mesmo sucesso da produção científica. Seus livros mais divulgados e lidos são
os ensaios sobre a comunicação, o jornalismo, o mass-media, a teoria da
comunicação e, principalmente, a Folkcomunicação, que hoje agrega importante
grupo de pesquisa em todas as universidades brasileiras. Foram poucos os
comentários e estudos sobre a produção literária: contos, poesias e romances. A
contribuição literária não se popularizou e/ou despertou grande interesse do
público.
Os críticos quando fazem análise da obra literária,
usam como modelo, a teoria do romance trabalhada por teóricos europeus ou
norte-americanos. Ai dissecam o texto como um cadáver: analisam o estilo de
narrativa, as formas literárias usadas, o cenário, os personagens etc. Tiram
conclusões para enquadrar o texto num modelo teórico. Sobre o trabalho dos
críticos, uma vez perguntaram a Heitor Villa Lobos, músico e compositor
brasileiro, como ele criava suas obras. Ele simplesmente disse que “crio como
cago”. Ele quis dizer que o processo de criação artístico é natural e quase que
instintivo. É o caso de Luiz Beltrão em sua vida literária. Ele cria suas obras
institivamente nos momentos que aproveita os estalos criativos de sua mente.
Nada é planejado detalhadamente. Ele alimenta a imaginação e a transforma em
palavras, frases, parágrafos, enfim, páginas de texto ficcional de questões que
permeiam a sua existência desde jovem.
O seu romance A Serpente do Atalho
(1974) é uma obra ficcional sobre o livro do Gênesis do Antigo Testamento. O texto religioso, escrito em
linguagem mitológica, mostra o surgimento do homem com Adão e Eva no Paraíso,
um reino da perfeição onde não há injustiça e nem exploração do homem pelo
homem, como no mundo capitalista. Mostra a aparição da serpente, no atalho, com
a maçã, e a saída de Adão e Eva do mundo divino para construir a vida terrestre
onde tudo é aventura, emoção, sensação, instinto e paixão. A ideia de revolta
se apresenta porque a saída do Paraíso, um reino sem sofrimento, onde não há
trabalho e nem exploração, coloca o ser humano num mundo de competividade, de
muita animosidade, lutas e esforços inimagináveis.
Luiz Beltrão constrói neste romance a trajetória do Gênesis. A linguagem
ficcional aqui é marcada pelas vivencias do autor no Nordeste brasileiro. Ele
se vale de suas experiências do ambiente nordestino, de seus rios, suas matas,
florestas, seus vales, de seus bichos. Pode-se dizer que o cenário do Gênesis
apresentado no romance mostra contornos do país tropical e não da antiga e
milenar Palestina. Mostra sua capacidade de busca de saciar sua curiosidade e
inquietude pelo principal mito da Humanidade: o surgimento da espécie humana.
Mostra as vivências do autor no interior da Mata Atlântica pernambucana no seio
da natureza e das suas paisagens.
O Adão e Eva criados pela ficção beltraniana são brasileiros, mais
precisamente, nordestinos que vivem o mito em cenário tropical. Aparecem mestiçados,
morenos, vivendo na mata atlântica nordestina. As vivencias humanas de Beltrão,
suas tentações, suas angústias, no Brasil do século XX aparecem ai em sua
narrativa que busca reconstruir uma história antiga em uma modernidade
tupiniquim. A serpente também é brasileira. Pode ser uma cascavel ou uma
jararaca travestida de réptil do Oriente Médio. Lá há o deserto com noites
frias e dias quentes. As matas e florestas não existem e nem mesmo há
abundância de água de rios, lagos e cachoeiras. Aqui temos a mata atlântica com
toda a sua abundância de fauna e flora dos trópicos.
No paradigma cristão católico, Adão, o primeiro homem criado por Deus,
caiu no mundo das paixões e sensações, chamado mundo do pecado (mundo das
vivencias empíricas ou sensoriais), pois, foi seduzido pela serpente. Mas Deus
criou o segundo homem, Jesus, que enviou para a Terra no sentido de salvar a
Humanidade da esperteza do réptil. Mas Jesus, o homem perfeito, divino, foi
crucificado. Este é o grande mito que atormenta a vida de Luiz Beltrão. Jesus
era esperado pelos judeus como um Rei, um Messias humano, para criar o estado
de Israel, como um novo Paraíso.
O primeiro homem, Adão, é um ser completo. Tem os dois sexos, masculino
e feminino, é andrógino. Mas Deus cria a mulher da costela de Adão. Ai são dois
seres que têm o poder da criação de outros homens. Surge o segundo sexo
separado do homem original. A serpente aparece como símbolo da tentação por
novas experiências e a busca do conhecimento sensorial da árvore da sabedoria.
A sexualidade, em sua dualidade masculino-feminino é também um grande enigma
que já inspirou teólogos, cientistas e artistas de todos os tempos.
A serpente é outro enigma que
atormenta os pensadores de todas as religiões.
É um réptil que rasteja na terra e é símbolo da Ciência e da busca da
sabedoria pela pesquisa empírica. Ela não é positiva nem negativa. Tem o
sentido de tentação, pois, ela coloca a dúvida que é o motor de ação
investigativa das ações e dos fenômenos. Beltrão apresenta a serpente no atalho
que seduz a mulher Eva e a faz descobrir outro mundo. Ela seduz também Adão no
atalho da existência humana.
A ação do romance se constrói ai em narrativas imaginosas do autor em
torno de Adão, Eva, o filho, a maça e a serpente. O mundo se constrói e
reconstrói a partir da sedução da serpente que nem Eva e nem Adão souberam
evitar. A tentação é a curiosidade, a dúvida, a busca de novas explicações,
emoções e sensações. É o que move a humanidade na construção de novos ideais,
novos pensamentos e pesquisas científicas. A serpente sempre estará nos
esperando no atalho do caminho. Os sábios da antiguidade diziam que não se deve
matar a serpente, mas aprender a conviver com ela. Ai se consegue o elixir da
longa vida ou a quinta-essência da filosofia que é um dos temas do sábio
cristão Tomás de Aquino que foi leitura de Luiz Beltrão no seminário.
Enfim, A Serpente no Atalho é
um livro produzido por um escritor engajado que mostra suas inquietações teológicas
que permeiam sua existência desde a juventude quando frequentou o seminário
para ser padre. Escrito em linguagem clara, elegante, apresenta de forma
imaginosa o mito da criação do homem e do aparecimento da humanidade na Terra.
O autor transforma o cenário tropical cheio de verde das matas e águas doces e
salgados onde a serpente espreita Adão e Eva no atalho da vida. A revolta
expressa simbolicamente no texto, decorre da constatação de que, se o primeiro
homem não cedesse à tentação, talvez, tivéssemos hoje vivendo num mundo sem
lutas, sem medos, nem conflitos, nem desigualdades sociais. Seria o Paraíso
como imaginado pelos socialistas utópicos em que tudo é perfeito, sem
contradições ou problemas sociais ou outros.
BIBLIOGRAFIA
BELTRÃO, Luiz – A Serpente
no Atalho. Brasília: Coordenada, 1974.
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