segunda-feira, 14 de julho de 2014

VICENTE SALLES, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS



VICENTE SALLES, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS

Prof. Dr. Sebastião Breguez*
        


O folclore como ciência ou método é uma discussão antiga no meio acadêmico no âmbito das ciências sociais (antropologia e sociologia). Nesse sentido que abordo aqui a posição do folclorista Vicente Salles que ficou célebre na historiografia do folclore brasileiro.

Vicente Salles sobre o Questionamento Teórico do Folclore (1969) que foi publicado na Revista de Cultura Vozes de outubro de 1969. Vou dividir minha intervenção em três partes: a vida e obra de Vicente Salles, o contexto dos debates sobre folclore na década de 1960-70 e o seu texto sobre o tema.

Vicente Juarimbu Salles (Igarapé-Açu, 27 de novembro de 1931) é um homem de muitas facetas: antropólogo de formação acadêmica, folclorista, historiador da cultura, poeta e musicólogo. Tem 24 livros publicados e cerca de 50 micro edições, além de ensaios em obras coletivas. Nasceu no interior do Pará e fez o Curso de Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia na Universidade do Brasil. Trabalhou na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em Brasília, de 1961 até sua extinção em 1990 pelo Presidente Collor, indo para a FUNARTE.

Começou bem cedo sua vida de pesquisador de folclore, música e literatura. Publicou, em 1948, seus primeiros artigos no jornal A Província do Pará, onde inicia sua carreira de jornalista. Foi repórter do jornal O estado do Pará em 1950. Ciceroneado pelo poeta Bruno de Menezes conheceu os grupos populares de Belém, batuques, pássaros e bumbas. O ano de 1954 foi um ano marcante em sua vida. Viajou para o interior do Pará com o objetivo de documentar bandas de música e o catimbó. Com farto material sobre a cultura e os costumes do seu estado, decidiu mudar para Rio de Janeiro, então, capital do Brasil. Ali estudou jornalismo, colaborou com jornais e revistas e bacharelou-se em Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia, com especialização em Antropologia.

A mudança para Rio de Janeiro, capital federal, centro do poder político, cultural e econômico foi decisiva para consolidar a carreira de pesquisador de folclore. Começou a trabalhar no MEC-Ministério de Educação e Cultura. Em 1961 foi transferido para CNDF-Campanha Nacional de Defesa do Folclore Brasileiro, sob o comando do folclorista Edson Carneiro. Organizou a Biblioteca Amadeu Amaral e foi redator-chefe da Revista Brasileira de Folclore e trabalhou com Renato Almeida, do qual foi assistente.

Em 1974 transferiu-se para Brasília como representante do Departamento de Assuntos Culturais do MEC no Distrito Federal. Lecionou no Instituto Villa-Lobos. Foi professor da Faculdade de Artes do Distrito Federal, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Música. Organizou a edição de obras de Edson Carneiro, Mozart de Araújo e outros. Em 1987 publicou "Carlos Gomes: uma obra em foco". Em 2000 apresentou o texto "Colonialismo e indústria cultural", na mesa redonda "Cultura e sociedade na Amazônia". Em 2001 participou na Universidade do Estado do Rio de Janeiro do Encontro Nacional dos pesquisadores de música popular brasileira no qual apresentou a palestra "Existe música popular na Amazônia"? Publicou diversos livros sobre música da região amazônica, cultura brasileira e História. Colaborou na produção de aproximadamente 50 discos de folclore e MPB.

O texto de Vicente Salles QUESTIONAMENTO TEÓRICO DO FOLCLORE, publicado na REVISTA DE CULTURA VOZES, Editora Vozes, outubro de 1969, é síntese do debate dos anos 1960-70 sobre a importância do folclore na âmbito das ciências sociais. O debate envolveu a intelectualidade brasileira tanto na universidade como fora dela. A questão era saber se o folclore era ciência ou método de pesquisa.
O Brasil vivia, nessa época, o fervor dos debates sobre nacionalismo cultural, invasão cultural, colonialismo cultural, massificação cultural pela mídia e destruição do folclore e cultura nacional. A disciplina folclore, assim, parecia ser o antidoto para evitar a destruição das culturas locais e regionais. Desde o fim da 2ª Guerra, a UNESCO, órgão da ONU, que trata das questões da educação e cultura, havia percebido que a onda desenvolvimentista em direção à modernidade, poderia ser o fim das culturas populares. Sugeriu a todos os estados membros que criassem comissões de folclore para estudar, documentar e ajudar na preservação do folclore. A partir de 1948, no Brasil, surgiu a Comissão Nacional de Folclore e as comissões estaduais de folclore.

Os primeiros membros destas comissões foram aliciados no meio da intelectualidade nacional: jornalistas, escritores, músicos e professores. Todos de variadas formações acadêmicas e, às vezes, somente com notório saber em cultura brasileira. Assim, criou-se um batalhão de militantes contra a destruição da cultura popular em todos os estados brasileiros. Ser folclorista, na época, tinha um status importante na sociedade. Mas a academia (universidade) mantinha preconceito com o tema folclore, considerado cultura das classes pobres.

O debate pela valorização dos estudos da cultura popular e do trabalho do folclorista tornou-se, naquela época, tema nacional. Afinal, o folclore é ciência ou apenas um método de pesquisa ? Havia os que defendiam a valorização do folclore como uma nova ciência no quadro das Ciências Sociais, entre os quais estavam Vicente Salles, Edson Carneiro, Renato Almeida e outros. De outro lado os sociólogos Florestan Fernandes, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Octavio Ianni, entre outros, que defendiam a idéia de que o folclore era apenas uma disciplina dentro do quadro das ciências sociais.

O folclorista sentia o peso do desprezo pelo seu trabalho e sentia-se marginalizado pela academia (universidade). Os estudos do folclore não tinham um status de saber acadêmico ou científico. Daí o esforço e o trabalho dos membros das comissões de folclore e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro para o reconhecimento do seu trabalho. Havia preconceito sobre a cultura popular, considerada cultura dos pobres e do atraso.

Daí a importância do debate para dar status de cientificidade às pesquisas feitas sobre a cultura do povo. A publicação dos livros do italiano Antonio Gramsci, pensador do eurocomunismo, abre uma nova vertente no debate. Gramsci mostra que vivemos em sua sociedade capitalista, onde existem duas classes sociais: a elite dominante e o povo (conjunto das classes subalternas). Cada classe tem sua própria cultura. A cultura da elite é letrada, possui status acadêmico, é ensinada nas escolas. A cultura popular (folclore) é transmitida pela oralidade, pela proximidade dos membros da comunidade, baseia-se na tradição e memória coletiva.

É nesse debate que surgem os enfoques comunicacionais da cultura. O primeiro foi MacLuhan, norte americano, sobre a homogeneização cultural e folclore industrial de laboratório. Edgar Morin, francês, vem em seguida com a idéia de uma sociedade tricultural: cultura erudita, cultura popular e cultura de massa. No Brasil aparecem novos enfoques como o de Luiz Beltrão que cria a expressão Folkcomunicação para designar os processos comunicacionais do folclore. José Marques de Melo também participa do debate e publica seus textos também na Revista de Cultura Vozes.

O texto de Vicente Salles – Questionamento Teórico do Folclore – é uma síntese deste debate. Mostra a visão dos folcloristas da época. É extremamente rico e mostra detalhes das argumentações de sua geração. Na verdade, os folcloristas daquela época pleiteavam colocar o Folclore com status privilegiado no âmbito das Ciências Sociais. Não só o seu reconhecimento como área importante de estudos sobre a cultura popular nas sociedades modernas. Hoje esta discussão está ultrapassada. Consideram-se os estudos folclóricos dentro da Antropologia Cultural, que é área de pesquisa das Ciências Sociais.

Seria o mesmo que hoje, os pesquisadores de Folkcomunicação quisessem transformar esta disciplina em uma ciência independente da Comunicação ou da Antropologia. Ou seja, o Folclore ou a Folkcomunicação são área de estudos da Antropologia e não ciência independente das ciências sociais. Quem aborda o folclore deve utilizar as metodologias de pesquisas quantitativas, qualitativas ou ainda a observação participante, que é comum nos estudos antropológicos.

As ciências sociais chegaram ao Brasil através da contribuição de dois franceses, financiados pela UNESCO, que atuaram na USP-Universidade de São Paulo. São eles Roger Bastide, que cria a sociologia no Brasil, e Claude Lévi-Strauss que cria a antropologia. A sociologia não estuda o folclore e a antropologia pesquisa o pensamento selvagem de nossos índios. O folclore, o conjunto da cultura popular, seus modos de pensar, sentir e agir são marginalizados da universidade.

Na verdade, nesta metamorfose do folclore, os estudos e pesquisas da cultura popular são realizados por comunicadores, antropólogos, historiadores, pesquisadores da linguística, da semiologia ou da psicologia cultural. O paradigma mudou e há uma busca de abordagem interdisciplinar. Dentro da antropologia a Etnografia estuda os aspectos materiais e a Etnologia os aspectos culturais ou imateriais. Entretanto, somente agora nos anos 2.000 que há valorização das pesquisas do folclore nos seus aspectos materiais (objetos, utensílios etc.) e imateriais (costumes, crenças, etc.).

Enfim, o texto de Vicente Salles é referencia básica para quem quer entender o debate dos anos 1960-70 sobre o folclore no contexto das ciências sociais. Sua visão é uma síntese dos folcloristas mais engajados da época como Édson Carneiro e Renato Almeida com quem Vicente Salles trabalhou na Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro. Também é importante dizer que a Revista de Cultura Vozes era a principal publicação que acompanhou os debates sobre a cultura brasileira. Publicava artigos dos principais pensadores brasileiros que tratavam do assunto e foi referencia nacional para a intelectualidade brasileira dos anos 1960-70..



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