VICENTE SALLES, FOLCLORE E CIÊNCIAS SOCIAIS
Prof. Dr. Sebastião Breguez*
O folclore como ciência ou método é uma discussão antiga no meio acadêmico no âmbito das ciências sociais (antropologia e sociologia). Nesse sentido que abordo aqui a posição do folclorista Vicente Salles que ficou célebre na historiografia do folclore brasileiro.
Vicente Salles sobre o Questionamento Teórico do Folclore
(1969) que foi publicado na Revista de Cultura Vozes de outubro de 1969. Vou
dividir minha intervenção em três partes: a vida e obra de Vicente Salles, o
contexto dos debates sobre folclore na década de 1960-70 e o seu texto sobre o
tema.
Vicente Juarimbu Salles
(Igarapé-Açu, 27 de novembro de 1931) é um homem de muitas facetas: antropólogo
de formação acadêmica, folclorista, historiador da cultura, poeta e musicólogo.
Tem 24 livros publicados e cerca de 50 micro edições, além de ensaios em obras
coletivas. Nasceu no interior do Pará e fez o Curso de Ciências Sociais na
Faculdade Nacional de Filosofia na Universidade do Brasil. Trabalhou na
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em Brasília, de 1961 até sua
extinção em 1990 pelo Presidente Collor, indo para a FUNARTE.
Começou bem cedo sua vida de
pesquisador de folclore, música e literatura. Publicou, em 1948, seus primeiros
artigos no jornal A Província do Pará,
onde inicia sua carreira de jornalista. Foi repórter do jornal O estado do Pará
em 1950. Ciceroneado pelo poeta Bruno de Menezes conheceu os grupos populares
de Belém, batuques, pássaros e bumbas. O ano de 1954 foi um ano marcante em sua
vida. Viajou para o interior do Pará com o objetivo de documentar bandas de
música e o catimbó. Com farto material sobre a cultura e os costumes do seu
estado, decidiu mudar para Rio de Janeiro, então, capital do Brasil. Ali
estudou jornalismo, colaborou com jornais e revistas e bacharelou-se em
Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia, com especialização em
Antropologia.
A mudança para Rio de Janeiro,
capital federal, centro do poder político, cultural e econômico foi decisiva
para consolidar a carreira de pesquisador de folclore. Começou a trabalhar no MEC-Ministério
de Educação e Cultura. Em 1961 foi transferido para CNDF-Campanha Nacional de
Defesa do Folclore Brasileiro, sob o comando do folclorista Edson Carneiro.
Organizou a Biblioteca Amadeu Amaral e foi redator-chefe da Revista Brasileira
de Folclore e trabalhou com Renato Almeida, do qual foi assistente.
Em 1974 transferiu-se para Brasília como
representante do Departamento de Assuntos Culturais do MEC no Distrito Federal.
Lecionou no Instituto Villa-Lobos. Foi professor da Faculdade de Artes do Distrito
Federal, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia
Brasileira de Música. Organizou a edição de obras de Edson Carneiro, Mozart de
Araújo e outros. Em 1987 publicou "Carlos Gomes: uma obra em foco".
Em 2000 apresentou o texto "Colonialismo e indústria cultural", na
mesa redonda "Cultura e sociedade na Amazônia". Em 2001 participou na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro do Encontro Nacional dos pesquisadores
de música popular brasileira no qual apresentou a palestra "Existe música
popular na Amazônia"? Publicou diversos livros sobre música da região
amazônica, cultura brasileira e História. Colaborou na produção de
aproximadamente 50 discos de folclore e MPB.
O texto de Vicente Salles QUESTIONAMENTO
TEÓRICO DO FOLCLORE, publicado na REVISTA DE CULTURA VOZES, Editora Vozes,
outubro de 1969, é síntese do debate dos anos 1960-70 sobre a importância do
folclore na âmbito das ciências sociais. O debate envolveu a intelectualidade
brasileira tanto na universidade como fora dela. A questão era saber se o
folclore era ciência ou método de pesquisa.
O Brasil vivia, nessa época,
o fervor dos debates sobre nacionalismo cultural, invasão cultural,
colonialismo cultural, massificação cultural pela mídia e destruição do
folclore e cultura nacional. A disciplina folclore, assim, parecia ser o
antidoto para evitar a destruição das culturas locais e regionais. Desde o fim
da 2ª Guerra, a UNESCO, órgão da ONU, que trata das questões da educação e
cultura, havia percebido que a onda desenvolvimentista em direção à
modernidade, poderia ser o fim das culturas populares. Sugeriu a todos os
estados membros que criassem comissões de folclore para estudar, documentar e
ajudar na preservação do folclore. A partir de 1948, no Brasil, surgiu a
Comissão Nacional de Folclore e as comissões estaduais de folclore.
Os primeiros membros destas
comissões foram aliciados no meio da intelectualidade nacional: jornalistas,
escritores, músicos e professores. Todos de variadas formações acadêmicas e, às
vezes, somente com notório saber em cultura brasileira. Assim, criou-se um
batalhão de militantes contra a destruição da cultura popular em todos os
estados brasileiros. Ser folclorista, na época, tinha um status importante na
sociedade. Mas a academia (universidade) mantinha preconceito com o tema
folclore, considerado cultura das classes pobres.
O debate pela valorização
dos estudos da cultura popular e do trabalho do folclorista tornou-se, naquela
época, tema nacional. Afinal, o folclore é ciência ou apenas um método de
pesquisa ? Havia os que defendiam a valorização do folclore como uma nova
ciência no quadro das Ciências Sociais, entre os quais estavam Vicente Salles,
Edson Carneiro, Renato Almeida e outros. De outro lado os sociólogos Florestan
Fernandes, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Octavio Ianni, entre outros, que
defendiam a idéia de que o folclore era apenas uma disciplina dentro do quadro
das ciências sociais.
O folclorista sentia o peso
do desprezo pelo seu trabalho e sentia-se marginalizado pela academia
(universidade). Os estudos do folclore não tinham um status de saber acadêmico
ou científico. Daí o esforço e o trabalho dos membros das comissões de folclore
e da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro para o reconhecimento do seu
trabalho. Havia preconceito sobre a cultura popular, considerada cultura dos
pobres e do atraso.
Daí a importância do debate
para dar status de cientificidade às pesquisas feitas sobre a cultura do povo. A
publicação dos livros do italiano Antonio Gramsci, pensador do eurocomunismo,
abre uma nova vertente no debate. Gramsci mostra que vivemos em sua sociedade
capitalista, onde existem duas classes sociais: a elite dominante e o povo (conjunto
das classes subalternas). Cada classe tem sua própria cultura. A cultura da
elite é letrada, possui status acadêmico, é ensinada nas escolas. A cultura
popular (folclore) é transmitida pela oralidade, pela proximidade dos membros
da comunidade, baseia-se na tradição e memória coletiva.
É nesse debate que surgem os
enfoques comunicacionais da cultura. O primeiro foi MacLuhan, norte americano,
sobre a homogeneização cultural e folclore industrial de laboratório. Edgar
Morin, francês, vem em seguida com a idéia de uma sociedade tricultural:
cultura erudita, cultura popular e cultura de massa. No
Brasil aparecem novos enfoques como o de Luiz Beltrão que cria a expressão
Folkcomunicação para designar os processos comunicacionais do folclore. José
Marques de Melo também participa do debate e publica seus textos também na
Revista de Cultura Vozes.
O texto de Vicente Salles – Questionamento Teórico do Folclore – é
uma síntese deste debate. Mostra a visão dos folcloristas da época. É
extremamente rico e mostra detalhes das argumentações de sua geração. Na
verdade, os folcloristas daquela época pleiteavam colocar o Folclore com status
privilegiado no âmbito das Ciências Sociais. Não só o seu reconhecimento como
área importante de estudos sobre a cultura popular nas sociedades modernas.
Hoje esta discussão está ultrapassada. Consideram-se os estudos folclóricos
dentro da Antropologia Cultural, que é área de pesquisa das Ciências Sociais.
Seria o mesmo que hoje, os
pesquisadores de Folkcomunicação quisessem transformar esta disciplina em uma
ciência independente da Comunicação ou da Antropologia. Ou seja, o Folclore ou
a Folkcomunicação são área de estudos da Antropologia e não ciência
independente das ciências sociais. Quem aborda o folclore deve utilizar as
metodologias de pesquisas quantitativas, qualitativas ou ainda a observação
participante, que é comum nos estudos antropológicos.
As ciências sociais chegaram
ao Brasil através da contribuição de dois franceses, financiados pela UNESCO,
que atuaram na USP-Universidade de São Paulo. São eles Roger Bastide, que cria
a sociologia no Brasil, e Claude Lévi-Strauss que cria a antropologia. A
sociologia não estuda o folclore e a antropologia pesquisa o pensamento
selvagem de nossos índios. O folclore, o conjunto da cultura popular, seus
modos de pensar, sentir e agir são marginalizados da universidade.
Na verdade, nesta
metamorfose do folclore, os estudos e pesquisas da cultura popular são
realizados por comunicadores, antropólogos, historiadores, pesquisadores da
linguística, da semiologia ou da psicologia cultural. O paradigma mudou e há
uma busca de abordagem interdisciplinar. Dentro da antropologia a Etnografia
estuda os aspectos materiais e a Etnologia os aspectos culturais ou imateriais.
Entretanto, somente agora nos anos 2.000 que há valorização das pesquisas do
folclore nos seus aspectos materiais (objetos, utensílios etc.) e imateriais
(costumes, crenças, etc.).
Enfim,
o texto de Vicente Salles é referencia básica para quem quer entender o debate
dos anos 1960-70 sobre o folclore no contexto das ciências sociais. Sua visão é
uma síntese dos folcloristas mais engajados da época como Édson Carneiro e
Renato Almeida com quem Vicente Salles trabalhou na Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro. Também é importante dizer que a Revista de Cultura Vozes
era a principal publicação que acompanhou os debates sobre a cultura
brasileira. Publicava artigos dos principais pensadores brasileiros que
tratavam do assunto e foi referencia nacional para a intelectualidade
brasileira dos anos 1960-70..
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