quinta-feira, 30 de março de 2017

FOLKCOMUNICAÇÃO: CULTURA DAS CLASSES SUBALTERNAS

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Folkcomunicação: a comunicação das classes subalternas

Prof. Dr. Sebastião Breguez





O livro Folkcomunicação: um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias, da editora da PUC/RS, com introdução de José Marques de Melo e notas de Juremir Machado da Silva e Antonio Hohlfeldt, traz o texto integral da tese de doutoramento de Luiz Beltrão, defendida na Universidade de Brasília em 1967.




Uma versão parcial, mas mutilada, havia sido publicada em 1970 pela Editora Melhoramentos, de São Paulo, com o título Comunicação e folclore. Quando esta primeira versão saiu, estava eu com dezessete anos de idade e já exercia o jornalismo no Diário do Rio Doce, em Governador Valadares (MG). Comprei o volume, li-o e escrevi uma resenha na minha coluna diária “Linha cultural”.



Aliás, havia iniciado uma série de matérias sobre os grandes estudiosos da cultura popular, como Sílvio Romero, Amadeu Amaral, Luis da Câmara Cascudo, Edson Carneiro. O livro de Luiz Beltrão, analisando as relações do folclore com a comunicação, logo me chamou a atenção. O estudo foi recebido com entusiasmo por este jovem pesquisador de cultura popular e também iniciante no jornalismo diário.

Portanto, ao fazer a presente resenha, visualizo as duas edições – a mutilada e a completa. A publicação, depois de ter ficado engavetado por 34 anos, do texto integral do principal estudo teórico de Luiz Beltrão sobre a Folkcomunicação é, sem dúvida, um acontecimento histórico para o público brasileiro, principalmente para os pesquisadores, professores e estudantes da área de Comunicação.

Com ela, a PUC-RS faz um regaste e reconhecimento a um produtivo pensador nacional que foi vítima da repressão política do regime militar. Seu crime, na época, fora estudar e desvendar, colocando-os a nu para a sociedade, os processos comunicacionais das classes populares, marginalizadas ou subalternas, que, não tendo espaço para expressar-se na grande imprensa, utiliza diversos processos rudimentares de comunicação e expressão, culturalmente ligados ao folclore.

O nome de Luiz Beltrão (1918-1986), jornalista e professor pernambucano, é fartamente citado na bibliografia de comunicação do País. Ele foi o primeiro brasileiro a se doutorar em Ciências da Comunicação e um dos pioneiros a se iniciar no caminho acadêmico-científico das pesquisas comunicacionais. A Intercom, que congrega os pesquisadores brasileiros da área, instituiu, para homenageá-lo, o Prêmio Luiz Beltrão, que, anualmente, destaca os principais nomes brasileiros da área.

Beltrão é autor de uma dezena de livros sobre os mais variados aspectos do jornalismo (Introdução à filosofia do jornalismo, 1960; A imprensa informativa, 1969; Jornalismo interpretativo, 1976; Jornalismo opinativo, 1980) da teoria da comunicação (Sociedade de massa: comunicação e literatura, 1972; Fundamentos científicos da comunicação, 1973; Teoria geral da comunicação, 1977; e Subsídios para uma teoria da Comunicação de massa, 1986) e da teoria da folkcomunicação (Comunicação e folclore, 1970; Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados, 1980; um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias, 2001).

O grande mérito de Luiz Beltrão, entretanto, foi o de desvendar os processos de comunicação das classes populares, que ele denominou de folkcomunicação, criando uma disciplina científica, no âmbito das Ciências da Comunicação, que hoje participa ativamente no campo da produção de conhecimento com teses, pesquisas, artigos de jornais e revistas, além de ter possibilitado a criação da Folkcom - Rede Nacional de Folkcomunicação, que já realizou cinco congressos e um seminário nacional.

A Folkcom é a mais nova associação de pesquisadores no âmbito das Ciências da Comunicação, criada em 1998, em São Bernardo do Campo, durante a I Folkcom – Conferencia Brasileira de Folkcomunicação, no campus da Universidade Metodista de São Paulo, com cerca de cinqüenta membros. Hoje ela tem a participação ativa de mais de quinhentos pesquisadores, como ficou demonstrado em Santos (SP), na V Folkcom, realizada em abril 2002, no campus do Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), sob a coordenação local de Rosa Nava.

 É graças a seu seguidor imediato, Roberto Benjamin (UFRPE), que o público acadêmico nacional pode conhecer o pensamento folkcomunicacional de Luiz Beltrão. Mas foi devido ao esforço de José Marques de Melo, diretor da Cátedra Unesco-Umesp de Comunicação para o Desenvolvimento Regional que as idéias de Beltrão se cristalizaram em rede nacional de pesquisadores. Outros pesquisadores já trabalhavam isoladamente, produzindo estudos e artigos sobre temas folkcomunicacionais – como Joseph Luyten (Umesp), sobre jornalismo e cordel; Osvaldo Trigueiro (UFPB), sobre a repercussão midiática das festas populares; Severino Lucena (UFPB), sobre as apropriações mercadológicas do folclore; e Sebastião Breguez (UFV), sobre as relações entre o folclore e a cultura de massas. Mas faltava o instrumental teórico para continuar fomentando os estudos de folkcomunicação.

Este instrumental metodológico e teórico básico era a tese original de Luiz Beltrão, que a Edipucs nos apresenta agora com o título Folkcomunicação: um estudo dos agentes dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. O livro tem uma introdução, da qual participam José Marques de Melo, que, aluno e seguidor de Luiz Beltrão, foi o guardião dos originais do livro; Antônio Hohlfeldt, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-RS; e Juremir Machado da Silva, que organizou a edição.

Com enfoques diferenciados, eles apresentam o pensamento do autor. Em duas partes, Beltrão trata da folkcomunicação: na primeira apresenta a teoria da folkcomunicação; na segunda traz uma pesquisa feita sobre a folkcomunicação no Brasil. Nas subpartes finais, registra as conclusões e a bibliografia que usou para trabalhar o tema. O que é interessante notar é que foi a partir da prática do jornalismo que Luiz Beltrão, já em 1936, quando publicou a primeira reportagem no Diário de Pernambuco, tratou da devoção e fé popular como experiência folkcomunicacional.

Aí seria o germe de sua grande incursão no campo teórico da teoria da comunicação. Pois, em um país de dimensões continentais, com uma diversidade de manifestações culturais, uma enorme diferença social das classes sociais, desníveis educacionais profundos, padrões de consumo e de renda distantes, apresentando um pequeno grupo com alta renda e a maioria com uma pequena, pequenina renda, é evidente que a comunicação não podia ser diferente. Enquanto que as classes dominantes organizam sua comunicação na mídia nacional (jornais, rádios, emissoras de tevê), as classes populares, marginalizadas dos bens de consumo culturais, utilizam os processos comunicacionais orais e artesanais.

Mas mantêm-se presentes à sociedade oficial as suas expectativas de vida, sua opinião, seus valores e com isto sobrevivem como grupo social, preservando a sua identidade cultural. As classes populares são críticas à sua situação de classe social e se manifestam também de maneira crítica à situação social em que estão inseridas, não sendo completamente passivas. Na verdade, o que Luiz Beltrão aponta como fundamento da Folkcomunicação é que não existe onipotência comunicacional na sociedade de classes.

Ou seja, numa mesma sociedade encontramos formas diferenciadas de cultura (cultura popular e cultura erudita), mas também de formas de comunicação. Enquanto as classes dominantes aprendem nas escolas a cultura e a comunicação oficial, as classes populares, marginalizadas do processo educacional e cultural, aprendem em seu próprio grupo as formas de comunicação pelo processo da oralidade (boca-ouvido), proximidade e convivência.

O que Beltrão visualizou no processo comunicacional brasileiro foi o mesmo que pesquisadores norte-americanos como Paul Lazarsfeld e Elihu Katz haviam observado nos Estados Unidos através do two steps flow of communication. Ou seja, a mídia que organiza o sistema de informação e lazer da sociedade de massa não consegue massificar, homogeneizar toda a sociedade. As classes populares não digerem totalmente as mensagens passadas pelos mass media e nem são passivos como se pensa.

Os efeitos da comunicação de massa são mediados e filtrados pelos líderes de opinião populares, uma espécie de gatekeepers. Luiz Beltrão chamou-os de agentes folkcomunicacionais que atuam nos grupos sociais de bairros da periferia, no meio rural ou nas 181cidades do interior. Estes líderes, verdadeiros agentes populares da comunicação (ou agentes folkcomunicacionais) reinterpretam e recodificam as mensagens, traduzem as mensagens da sociedade globalizada pelos media para os grupos populares.

Na primeira parte do livro, o autor apresenta seus pressupostos teóricos e metodológicos. Na segunda, faz análise da evolução da comunicação brasileira, do período pré-cabraliano, passando pelo domínio colonial português, até o Brasil República. Faz ainda inventário das principais manifestações culturais populares do Brasil contemporâneo. O que chama a atenção é que o Brasil foi essencialmente rural no período de 1500 a 1930. A fazenda foi, neste período, o núcleo da economia, da vida social, da produção cultural e da articulação política. Os incipientes centros urbanos não passavam de entrepostos para comercialização dos produtos rurais.

A produção cultural e a comunicação refletiam esta condição material da sociedade brasileira. É a partir de 1930 que o Brasil se industrializa e, com isso, a comunicação e a cultura se desenvolvem no meio urbano. Mas as classes populares não são assimiladas pela nova estrutura social urbana, mas são marginalizadas. Assim, o desenvolvimento do jornal, do cinema, do rádio e da televisão integram as classes sociais de forma heterogênea, pois não podia ser diferente. É normal, portanto, que, ao lado de uma cultura de elite, exista uma comunicação de elite e, ao lado de uma cultura popular, exista uma comunicação popular.

É exatamente esta dicotomia que Beltrão analisa, com pesquisas feitas na sociedade brasileira, com conclusões para a nossa sociedade formada por classes sociais distintas e distantes socialmente. É extremamente importante sua análise da circulação de informações na sociedade brasileira da década de 1960.

Do chofer de caminhão, que era o repórter de integração nacional. Do caixeiro-viajante, o vendedor ambulante, que percorria todo o Brasil para vender seus produtos e era o agente de divulgação das notícias e informações do que acontecia nos grandes centros urbanos. Da literatura de cordel, que publicava o relato jornalístico dos principais fatos e acontecimentos nacionais e internacionais Da queima do Judas, como festa nacional de protesto, quando o povo faz críticas a personagens da vida pública nacional, mostrando seu descontentamento com a sociedade dominante.   Das festas do Bumba-meu-boi, que acontecem fartamente nas regiões onde o boi não existe ou a carne bovina como alimento é coisa rara. Dos versos e das danças do congado e de outras festas populares, ao expressarem mensagens, sentimentos e opiniões do que pensam as classes populares sobre os dirigentes da Nação e as políticas governamentais. Das romarias a seus santos, em que o povo reinterpreta o sentimento religioso e busca alianças extraterrenas para escapar a seus sofrimentos físicos, mostrando seu desprezo e descontentamento em relação às classes dominantes.

Não eram nem os jornais impressos, nem as emissoras de rádios e tevê que integravam o Brasil no mundo da informação. Eram os agentes e meios populares de informação de fatos e expressão de idéias. Isto mostra o caráter elitista de meios oficiais de comunicação como o jornal, a revista, o rádio e a televisão. Embora estes meios tenham audiências estrondosas, principalmente os meios audiovisuais, a decodificação das mensagens não é feita de forma homogênea por todas as classes sociais.

As classes populares são dependentes de líderes de opinião como as lideranças de bairros, lideranças religiosas e lideranças sindicais nas grandes cidades. Mas também no meio rural e nas cidades do interior, onde há sempre uma desconfiança dos valores urbanos e mesmo as imagens que circulam nos meios de comunicação de massa. As classes populares dependem do carisma das suas lideranças, dos seus gatekeepers para assimilar as informações da sociedade oficial. Estamos já no Terceiro Milênio e a sociedade brasileira não está integrada à cultura alfabetizada que caracteriza a modernidade das sociedades industrializadas, as camadas populares ainda sobrevivem graças ao poder de informação da comunicação oral. Portanto, a Folkcomunicação, que estuda as áreas de sobrevivências do folclore e do rural, é uma área de estudo extremamente rica para nós.

Mesmo porque as sociedades altamente evoluídas urbana e industrialmente ainda mostram áreas populacionais em que a folkcomunicação é importante para a existência do grupo não só em formas culturais de identidade social, mas também de comunicação social. È por isto que não podemos, como fizeram muitos pesquisadores, transportar os modelos teóricos dos fenômenos comunicacionais europeus e norte-americanos para explicar a realidade brasileira.

Temos que usar estes para construir nossas explicações de como a sociedade brasileira se comunica, como as mensagens circulam através da mídia e o processo de recepção se dá no seio das classes sociais, que não são homogêneas em termos de renda, de erudição e de capacidade de decodificação das mensagens. Daí a importância de Luiz Beltrão como um teórico brasileiro, que se apóia na realidade brasileira, mosaica, complexa, heterogênea. Uma realidade que não pode explicada por modelos importados ou por teorias que contemplam análises de sociedades mais desenvolvidas economicamente e mais homogêneas em termos sociais e culturais.

A criação da Folkcom - Sociedade Brasileira de Estudos da Folkcomunicação e a realização de cinco congressos e seminários nacionais com repercussão internacional mostram bem que a disciplina criada por Luiz Beltrão em 1967 é uma área rica para os pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Assim como a proliferação de jornais e revistas digitais ou impressos ou mesmo de livros e teses de mestrado ou doutorado. E a resposta receptiva das associações de pesquisadores de Comunicação, criando núcleos de pesquisas para permitir estudos e trabalhos acadêmicos sobre o âmbito da folkcomunicação. Neste último aspecto, a Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, a Felafacs - Federación Latino-Americana de las Facultades de Comunicación, a ALAIC - Asociación Latino-Americana de Investigadores de la Comunicación e a Lusocom - Federação Lusófona de Ciências da Comunicação assumem a importância da nova disciplina no âmbito dos estudos comunicacionais.

É por isto que a publicação integral da tese de Beltrão é importante para servir de farol no desenvolvimento destes estudos.


Sebastião Breguez Jornalista, doutor em Comunicação pela Universidade de Estrasburgo (França), professor da Universidade Federal de Viçosa (MG), coordenador do Núcleo de Pesquisa de Folkcomunicação, da Intercom.

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