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Folkcomunicação: a comunicação das classes subalternas
Folkcomunicação: a comunicação das classes subalternas
Prof. Dr. Sebastião Breguez
O livro Folkcomunicação: um
estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de
idéias, da editora da PUC/RS, com introdução de José Marques de Melo e notas de
Juremir Machado da Silva e Antonio Hohlfeldt, traz o texto integral da tese de
doutoramento de Luiz Beltrão, defendida na Universidade de Brasília em 1967.
Uma versão parcial, mas
mutilada, havia sido publicada em 1970 pela Editora Melhoramentos, de São
Paulo, com o título Comunicação e folclore. Quando esta primeira versão saiu,
estava eu com dezessete anos de idade e já exercia o jornalismo no Diário do
Rio Doce, em Governador Valadares (MG). Comprei o volume, li-o e escrevi uma
resenha na minha coluna diária “Linha cultural”.
Aliás, havia iniciado uma
série de matérias sobre os grandes estudiosos da cultura popular, como Sílvio
Romero, Amadeu Amaral, Luis da Câmara Cascudo, Edson Carneiro. O livro de Luiz
Beltrão, analisando as relações do folclore com a comunicação, logo me chamou a
atenção. O estudo foi recebido com entusiasmo por este jovem pesquisador de
cultura popular e também iniciante no jornalismo diário.
Portanto, ao fazer a presente
resenha, visualizo as duas edições – a mutilada e a completa. A publicação,
depois de ter ficado engavetado por 34 anos, do texto integral do principal
estudo teórico de Luiz Beltrão sobre a Folkcomunicação é, sem dúvida, um
acontecimento histórico para o público brasileiro, principalmente para os
pesquisadores, professores e estudantes da área de Comunicação.
Com ela, a PUC-RS faz um
regaste e reconhecimento a um produtivo pensador nacional que foi vítima da
repressão política do regime militar. Seu crime, na época, fora estudar e
desvendar, colocando-os a nu para a sociedade, os processos comunicacionais das
classes populares, marginalizadas ou subalternas, que, não tendo espaço para
expressar-se na grande imprensa, utiliza diversos processos rudimentares de
comunicação e expressão, culturalmente ligados ao folclore.
O nome de Luiz Beltrão
(1918-1986), jornalista e professor pernambucano, é fartamente citado na
bibliografia de comunicação do País. Ele foi o primeiro brasileiro a se
doutorar em Ciências da Comunicação e um dos pioneiros a se iniciar no caminho
acadêmico-científico das pesquisas comunicacionais. A Intercom, que congrega os
pesquisadores brasileiros da área, instituiu, para homenageá-lo, o Prêmio Luiz
Beltrão, que, anualmente, destaca os principais nomes brasileiros da área.
Beltrão é autor de uma dezena
de livros sobre os mais variados aspectos do jornalismo (Introdução à filosofia
do jornalismo, 1960; A imprensa informativa, 1969; Jornalismo interpretativo,
1976; Jornalismo opinativo, 1980) da teoria da comunicação (Sociedade de massa:
comunicação e literatura, 1972; Fundamentos científicos da comunicação, 1973;
Teoria geral da comunicação, 1977; e Subsídios para uma teoria da Comunicação
de massa, 1986) e da teoria da folkcomunicação (Comunicação e folclore, 1970;
Folkcomunicação: a comunicação dos marginalizados, 1980; um estudo dos agentes
e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias, 2001).
O grande mérito de Luiz
Beltrão, entretanto, foi o de desvendar os processos de comunicação das classes
populares, que ele denominou de folkcomunicação, criando uma disciplina científica,
no âmbito das Ciências da Comunicação, que hoje participa ativamente no campo
da produção de conhecimento com teses, pesquisas, artigos de jornais e
revistas, além de ter possibilitado a criação da Folkcom - Rede Nacional de
Folkcomunicação, que já realizou cinco congressos e um seminário nacional.
A Folkcom é a mais nova
associação de pesquisadores no âmbito das Ciências da Comunicação, criada em
1998, em São Bernardo do Campo, durante a I Folkcom – Conferencia Brasileira de
Folkcomunicação, no campus da Universidade Metodista de São Paulo, com cerca de
cinqüenta membros. Hoje ela tem a participação ativa de mais de quinhentos
pesquisadores, como ficou demonstrado em Santos (SP), na V Folkcom, realizada
em abril 2002, no campus do Centro Universitário Monte Serrat (Unimonte), sob a
coordenação local de Rosa Nava.
É graças a seu seguidor imediato, Roberto
Benjamin (UFRPE), que o público acadêmico nacional pode conhecer o pensamento
folkcomunicacional de Luiz Beltrão. Mas foi devido ao esforço de José Marques
de Melo, diretor da Cátedra Unesco-Umesp de Comunicação para o Desenvolvimento
Regional que as idéias de Beltrão se cristalizaram em rede nacional de
pesquisadores. Outros pesquisadores já trabalhavam isoladamente, produzindo
estudos e artigos sobre temas folkcomunicacionais – como Joseph Luyten (Umesp),
sobre jornalismo e cordel; Osvaldo Trigueiro (UFPB), sobre a repercussão
midiática das festas populares; Severino Lucena (UFPB), sobre as apropriações
mercadológicas do folclore; e Sebastião Breguez (UFV), sobre as relações entre
o folclore e a cultura de massas. Mas faltava o instrumental teórico para
continuar fomentando os estudos de folkcomunicação.
Este instrumental metodológico
e teórico básico era a tese original de Luiz Beltrão, que a Edipucs nos
apresenta agora com o título Folkcomunicação: um estudo dos agentes dos meios
populares de informação de fatos e expressão de idéias. O livro tem uma
introdução, da qual participam José Marques de Melo, que, aluno e seguidor de
Luiz Beltrão, foi o guardião dos originais do livro; Antônio Hohlfeldt,
coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-RS; e Juremir
Machado da Silva, que organizou a edição.
Com enfoques diferenciados,
eles apresentam o pensamento do autor. Em duas partes, Beltrão trata da
folkcomunicação: na primeira apresenta a teoria da folkcomunicação; na segunda
traz uma pesquisa feita sobre a folkcomunicação no Brasil. Nas subpartes
finais, registra as conclusões e a bibliografia que usou para trabalhar o tema.
O que é interessante notar é que foi a partir da prática do jornalismo que Luiz
Beltrão, já em 1936, quando publicou a primeira reportagem no Diário de
Pernambuco, tratou da devoção e fé popular como experiência folkcomunicacional.
Aí seria o germe de sua grande
incursão no campo teórico da teoria da comunicação. Pois, em um país de
dimensões continentais, com uma diversidade de manifestações culturais, uma
enorme diferença social das classes sociais, desníveis educacionais profundos,
padrões de consumo e de renda distantes, apresentando um pequeno grupo com alta
renda e a maioria com uma pequena, pequenina renda, é evidente que a
comunicação não podia ser diferente. Enquanto que as classes dominantes
organizam sua comunicação na mídia nacional (jornais, rádios, emissoras de
tevê), as classes populares, marginalizadas dos bens de consumo culturais,
utilizam os processos comunicacionais orais e artesanais.
Mas mantêm-se presentes à
sociedade oficial as suas expectativas de vida, sua opinião, seus valores e com
isto sobrevivem como grupo social, preservando a sua identidade cultural. As
classes populares são críticas à sua situação de classe social e se manifestam
também de maneira crítica à situação social em que estão inseridas, não sendo
completamente passivas. Na verdade, o que Luiz Beltrão aponta como fundamento
da Folkcomunicação é que não existe onipotência comunicacional na sociedade de
classes.
Ou seja, numa mesma sociedade
encontramos formas diferenciadas de cultura (cultura popular e cultura
erudita), mas também de formas de comunicação. Enquanto as classes dominantes
aprendem nas escolas a cultura e a comunicação oficial, as classes populares,
marginalizadas do processo educacional e cultural, aprendem em seu próprio
grupo as formas de comunicação pelo processo da oralidade (boca-ouvido),
proximidade e convivência.
O que Beltrão visualizou no
processo comunicacional brasileiro foi o mesmo que pesquisadores
norte-americanos como Paul Lazarsfeld e Elihu Katz haviam observado nos Estados
Unidos através do two steps flow of
communication. Ou seja, a mídia que organiza o sistema de informação e
lazer da sociedade de massa não consegue massificar, homogeneizar toda a
sociedade. As classes populares não digerem totalmente as mensagens passadas
pelos mass media e nem são passivos como se pensa.
Os efeitos da comunicação de
massa são mediados e filtrados pelos líderes de opinião populares, uma espécie
de gatekeepers. Luiz Beltrão
chamou-os de agentes folkcomunicacionais que atuam nos grupos sociais de
bairros da periferia, no meio rural ou nas 181cidades do interior. Estes
líderes, verdadeiros agentes populares da comunicação (ou agentes
folkcomunicacionais) reinterpretam e recodificam as mensagens, traduzem as
mensagens da sociedade globalizada pelos media para os grupos populares.
Na primeira parte do livro, o
autor apresenta seus pressupostos teóricos e metodológicos. Na segunda, faz
análise da evolução da comunicação brasileira, do período pré-cabraliano,
passando pelo domínio colonial português, até o Brasil República. Faz ainda
inventário das principais manifestações culturais populares do Brasil
contemporâneo. O que chama a atenção é que o Brasil foi essencialmente rural no
período de 1500 a 1930. A fazenda foi, neste período, o núcleo da economia, da
vida social, da produção cultural e da articulação política. Os incipientes
centros urbanos não passavam de entrepostos para comercialização dos produtos
rurais.
A produção cultural e a
comunicação refletiam esta condição material da sociedade brasileira. É a
partir de 1930 que o Brasil se industrializa e, com isso, a comunicação e a
cultura se desenvolvem no meio urbano. Mas as classes populares não são
assimiladas pela nova estrutura social urbana, mas são marginalizadas. Assim, o
desenvolvimento do jornal, do cinema, do rádio e da televisão integram as
classes sociais de forma heterogênea, pois não podia ser diferente. É normal,
portanto, que, ao lado de uma cultura de elite, exista uma comunicação de elite
e, ao lado de uma cultura popular, exista uma comunicação popular.
É exatamente esta dicotomia
que Beltrão analisa, com pesquisas feitas na sociedade brasileira, com
conclusões para a nossa sociedade formada por classes sociais distintas e
distantes socialmente. É extremamente importante sua análise da circulação de informações
na sociedade brasileira da década de 1960.
Do chofer de caminhão, que era
o repórter de integração nacional. Do caixeiro-viajante, o vendedor ambulante,
que percorria todo o Brasil para vender seus produtos e era o agente de
divulgação das notícias e informações do que acontecia nos grandes centros
urbanos. Da literatura de cordel, que publicava o relato jornalístico dos
principais fatos e acontecimentos nacionais e internacionais Da queima do
Judas, como festa nacional de protesto, quando o povo faz críticas a
personagens da vida pública nacional, mostrando seu descontentamento com a
sociedade dominante. Das festas do Bumba-meu-boi, que acontecem
fartamente nas regiões onde o boi não existe ou a carne bovina como alimento é
coisa rara. Dos versos e das danças do congado e de outras festas populares, ao
expressarem mensagens, sentimentos e opiniões do que pensam as classes
populares sobre os dirigentes da Nação e as políticas governamentais. Das
romarias a seus santos, em que o povo reinterpreta o sentimento religioso e
busca alianças extraterrenas para escapar a seus sofrimentos físicos, mostrando
seu desprezo e descontentamento em relação às classes dominantes.
Não eram nem os jornais
impressos, nem as emissoras de rádios e tevê que integravam o Brasil no mundo
da informação. Eram os agentes e meios populares de informação de fatos e
expressão de idéias. Isto mostra o caráter elitista de meios oficiais de
comunicação como o jornal, a revista, o rádio e a televisão. Embora estes meios
tenham audiências estrondosas, principalmente os meios audiovisuais, a
decodificação das mensagens não é feita de forma homogênea por todas as classes
sociais.
As classes populares são
dependentes de líderes de opinião como as lideranças de bairros, lideranças
religiosas e lideranças sindicais nas grandes cidades. Mas também no meio rural
e nas cidades do interior, onde há sempre uma desconfiança dos valores urbanos
e mesmo as imagens que circulam nos meios de comunicação de massa. As classes
populares dependem do carisma das suas lideranças, dos seus gatekeepers para assimilar as
informações da sociedade oficial. Estamos já no Terceiro Milênio e a sociedade
brasileira não está integrada à cultura alfabetizada que caracteriza a
modernidade das sociedades industrializadas, as camadas populares ainda
sobrevivem graças ao poder de informação da comunicação oral. Portanto, a Folkcomunicação,
que estuda as áreas de sobrevivências do folclore e do rural, é uma área de
estudo extremamente rica para nós.
Mesmo porque as sociedades
altamente evoluídas urbana e industrialmente ainda mostram áreas populacionais
em que a folkcomunicação é importante para a existência do grupo não só em
formas culturais de identidade social, mas também de comunicação social. È por
isto que não podemos, como fizeram muitos pesquisadores, transportar os modelos
teóricos dos fenômenos comunicacionais europeus e norte-americanos para
explicar a realidade brasileira.
Temos que usar estes para
construir nossas explicações de como a sociedade brasileira se comunica, como
as mensagens circulam através da mídia e o processo de recepção se dá no seio
das classes sociais, que não são homogêneas em termos de renda, de erudição e
de capacidade de decodificação das mensagens. Daí a importância de Luiz Beltrão
como um teórico brasileiro, que se apóia na realidade brasileira, mosaica,
complexa, heterogênea. Uma realidade que não pode explicada por modelos
importados ou por teorias que contemplam análises de sociedades mais
desenvolvidas economicamente e mais homogêneas em termos sociais e culturais.
A criação da Folkcom -
Sociedade Brasileira de Estudos da Folkcomunicação e a realização de cinco
congressos e seminários nacionais com repercussão internacional mostram bem que
a disciplina criada por Luiz Beltrão em 1967 é uma área rica para os
pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Assim como a proliferação de jornais
e revistas digitais ou impressos ou mesmo de livros e teses de mestrado ou
doutorado. E a resposta receptiva das associações de pesquisadores de
Comunicação, criando núcleos de pesquisas para permitir estudos e trabalhos
acadêmicos sobre o âmbito da folkcomunicação. Neste último aspecto, a Intercom
- Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, a Felafacs
- Federación Latino-Americana de las Facultades de Comunicación, a ALAIC -
Asociación Latino-Americana de Investigadores de la Comunicación e a Lusocom -
Federação Lusófona de Ciências da Comunicação assumem a importância da nova
disciplina no âmbito dos estudos comunicacionais.
É por isto que a publicação
integral da tese de Beltrão é importante para servir de farol no
desenvolvimento destes estudos.
Sebastião
Breguez Jornalista, doutor em Comunicação pela Universidade de Estrasburgo
(França), professor da Universidade Federal de Viçosa (MG), coordenador do
Núcleo de Pesquisa de Folkcomunicação, da Intercom.
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