quinta-feira, 23 de março de 2017

ESTUDOS DE FOLKCOMUNICAÇÃO HOJE

INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002
http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2002/Congresso2002_Anais/2002_NP17BREGUEZ.pdf





Os estudos de folkcomunicação hoje no Brasil (1)

Prof. Dr. Sebastião Geraldo Breguêz 



A Folkcomunicação é uma disciplina científica criada na década de 1960 pelo jornalista e professor Luiz Beltrão com o objetivo de analisar os impactos midiáticos das manifestações culturais das classes populares, que também são chamadas de classes subalternas. Ao longo dos anos, ela se transformou em importante área de reflexão acadêmica, dentro do universo comunicacional brasileiro, liderada por dois principais discípulos de Luiz Beltrão: o seu sucessor imediato, o professor Dr. Roberto Benjamin (UFRPE) e o professor Dr. José Marques de Melo (Cátedra UNESCO/UMESP de Comunicação). Por incentivo destes dois pesquisadores, junto com uma dezena de acadêmicos de várias partes do Brasil, foi criada a Rede Nacional de Pesquisadores de Folkcomunicação, que já realizou três congressos nacionais e está preparando o próximo para a cidade de Campo Grande (MS), no portal do Pantanal Mato-grossense, região rica em manifestações folclóricas, mas também de raras belezas naturais.

A proliferação de estudos e pesquisas na área de Folkcomunicação – que estuda a interface que une a Comunicação e o Folclore (Cultura Popular), com o intuito de oferecer condições para uma reflexão permanente e aprofundada da repercussão do folclore na mídia – fez com que as principais instituições nacionais e internacionais de Ciências da Comunicação criassem Núcleos e/ou Grupos de Pesquisas nesta área como:

ALAIC – Associação Latino-americana de Ciências da Comunicação;
FELAFACS – Federação Latino-Americana de Faculdades de Comunicação Social;
LUSOCON – Federação Lusófona de Ciências da Comunicação;
INTERCOM- Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

A Folkcomunicação, assim, se dedica ao estudo “do processo de intercâmbio de informações e manifestações de opiniões, idéias e atitudes da massa, através dos agentes e meios ligados direta ou indiretamente ao folclore” (Luiz Beltrão). Assim, para entendermos o seu verdadeiro campo de ação, temos que situar os dois itens básicos na análise do tema: um significado de Cultura Popular (folclore) e um significado de meios de Comunicação.

Cada época, com sua visão de mundo tem imprimido novas concepções à ciência do folclore, desde o romantismo, com a valorização da consciência histórica, origens míticas e volkgeist. Buscando raízes populares nesse processo de consolidação dos Estados Nacionais, o romantismo passou a valorizar as coisas do povo, conferindo-lhe o caráter de entidade homogênea. Mas esta concepção romântica de povo, vista como uma espécie de essência independente da divisão da sociedade em classes sociais, dotado de alma popular -conforme escreve Fischer- é fato que até hoje acarreta bastante confusão.

O povo não constitui uma simples categoria abstrata, mas é elemento vivo, transformador, criador de valores materiais e espirituais determinantes no desenvolvimento histórico. As manifestações populares, por isso, encerram conteúdo vivo e dinâmico, numa constante criação. O folclore pode ser muito bem visualizado - como insinua o pensador italiano Antônio Gramsci - em termos de estruturas ideológicas da sociedade: ao lado da chamada cultura erudita, transmitida nas escolas e sancionada pelas instituições sociais, existe a cultura criada pelo povo, que articula concepção de mundo e de vida contrário aos esquemas oficiais dominantes. Há nesta última, é claro, extratos fossilizados, conservadores, e até mesmo retrógrados, que refletem condições de vida passadas, mas também criadoras, progressistas, que contradizem a moral dos extratos dirigentes.

É muito importante esta visualização do problema, pois ela vai nos permitir verificar que em uma mesma sociedade há duas formas distintas de cultura: uma cultura erudita, própria da elite, dos grupos que detém o poder na sociedade burguesa - as classes dominantes; e uma cultura peculiar á grande massa populacional, ao povo, às classes subalternas. A cultura erudita ou clássica é, assim, formada por um conjunto de símbolos e elementos míticos que caracterizam um processo de desenvolvimento cultural avançado.

A cultura popular, entretanto, reflete um simbolismo rústico, denotando um estágio anterior, mas não estacionário, do desenvolvimento cultural. E é bom deixar claro que estas diferenças são de grau, isto é, são determinadas socialmente pela própria estrutura da sociedade, e não são diferenças naturais. Outra forma de apresentar a mesma ideia é seguindo distinção: a cultura erudita é uma realidade imposta de cima para baixo - dos produtores para os consumidores - enquanto que a cultura popular é estruturada a partir de relação sociais no coração da sociedade. Visto isto, cabe analisar a situação dos meios de comunicação na dinâmica cultural. A sociedade é dinâmica, está em constante evolução (às vezes, até em revolução) e, por isto, as culturas refletem esta dinamicidade. Há aqui o fenômeno da comunicação que, sem querer descaracterizar, provoca mudanças culturais importantes.

Os grupos, as classes, as instituições não estão hermeticamente fechadas: intercomunicam-se permanentemente. Não obstante disporem de simbolismo diferente, há neles faixa comum - um campo de experiência comum, conforme observou Schramm, que permite a troca de suas práticas de vida, dos seus usos e costumes, das suas concepções. Em todo mecanismo de formação de cultura, a comunicação representa papel primordial. Como processo social básico, a comunicação representa o próprio motor- da configuração do simbolismo que marca o fenômeno cultural. É através da comunicação que as gerações mais velhas transmitem às gerações mais novas o seu acervo de experiências, os símbolos, as normas, os valores, os mitos.

É a comunicação que assegura a sobrevivência e a continuidade de uma cultura no tempo, promovendo, inclusive, a transformação dos seus símbolos em face dos novos fenômenos que o desenvolvimento aponta. Entretanto, a influência dos meios de comunicação, o predomínio da cultura de massa, e intensificação do avanço industrial com novas tecnologias, e o turismo como fenômeno de lazer das multidões, novos desafios foram lançados às manifestações folclóricas. Consequentemente, abriram novas perspectivas ao estudo dos processos de transformação, aculturação a até mesmo de destruição.

Um pesquisador de folclore, que esteve num congresso em João Pessoa, recentemente, deu seu relato sobre o assunto, contando o que tinha visto e ouvido. Disse que com o gravador ligado ouvia com atenção uma velha de 80 anos que lhe contava uma história de Tancroso da Carochinha. “Quando terminou -continuou- um garoto de uns 14 anos se achegou e quis também contar a sua história. Eu fazia uma coletânea desses contos do interior da Paraíba para o meu livro” "Estória da Boca da Noite e aceitei a proposta do menino. Foi gravado, então, nada mais nada menos que a história dos Três Porquinhos, difundida pelos estúdios de Walt Disney através de todos os meios de comunicação”.

Este pequeno caso contado na Paraíba é igual a outros tantos que ocorrem em todo o Brasil onde a penetração dos meios de comunicação é uma realidade inevitável. Aliás, desde a década de 1960 a área de comunicação foi contemplada com generosa bibliografia sobre o assunto, passando desde então a participar do diálogo interdisciplinar, buscando compreender os novos fenômenos que se alastram com rapidez. O francês Edgar Morim, especialista em problemas da comunicação e metodologia em ciências sociais- analisando a homogeneização preconizada pelos mass-media, observa que o folclore é absorvido pela cultura de massa e, posteriormente, universalizado no "novo sincretismo", tal como os produtos naturais são homogeneizados para o consumo.

Abrahan Moles, também francês, lembra que a nossa era é das conservas culturais: os bens culturais (livro, disco, cassetes, filmes) são etiquetados e preparados para o consumo nos supermercados da cultura que encontramos nos centros urbanos. Evidentemente esse processo conduz à perda da manifestação cultural enquanto expressão da criatividade de um grupo humano nas suas constâncias e raízes – enfim, em suas tradições culturais. Leva á descaracterização e a perda dos valores básicos de memória e identidade.

Outros fatores vêem se aliar à atuação dos meios de comunicação: as mudanças econômicas, as transformações industriais ou mesmo a alta do custo de vida que não permite que o povo compre a indumentária característica das suas manifestações ou fenômenos sociais como o êxodo rural que provoca ruptura com a tradição, pois a população do campo vem para as cidades em busca de melhores condições de vida. Com o crescimento da sociedade industrial é inevitável a extinção progressiva do folclore enquanto manifestação cultural espontânea. Isto porque o avanço cada vez mais intenso das relações sociais e industriais engendra também o avanço da indústria cultural que, em geral, se apropria das expressões que vêm do povo imprimindo-lhes novos significados.

 Se o folclore no Brasil constitui um campo de exteriorização simbólica da maior importância não é por outra coisa senão porque o grosso da população vive marginalizada e alijada das garantias e regalias da civilização urbano-industrial e sua expressão cultural é manifestada em diversas formas da cultura oral. Mas não é preciso, entretanto, assegurar a permanência da miséria como sustentáculo material do folclore, nem tampouco se deve cultuar nostalgicamente o estágio pré-industrial da sociedade para assegurar a existência da cultura popular. O que se torna necessário é a atuação do Estado, através de suas instituições culturais, para manter e proteger as manifestações culturais e espontâneas do povo.

Esta ingerência, evidentemente, pressupõe um Estado de composição democrática no qual o folclore fique ao abrigo das adulterações provocadas pelo dirigismo propagandístico. E que exerça papel de autoconhecimento do povo brasileiro, como queria um dos seus maiores pesquisadores, o saudoso Mário de Andrade. Autoconhecimento de uma cultura marcada pela oralidade e pela herança afro-indígena e que espelha, como documento, a situação existencial e cultural das camadas subalternas da população que faz este país crescer. Conclusões Inúmeras são as conclusões que se podem tirar da ação dos meios de comunicação sobre o folclore. A principal delas, entretanto, refere-se ao fato de que esta atuação é um fenômeno inexorável. Como fenômeno sociocultural o folclore não está dissociado da superestrutura da sociedade e, portanto, não pode fugir aos dinamismos próprios daquela.

Se os meios de comunicação destruirão o folclore, é afirmativa difícil de fazer e, creio, improvável de acontecer. O folclore passará por mudanças, pois mudanças são naturais aos fenômenos socioculturais; passará por descaracterizações, perderá a sua espontaneidade, mas se manterá como cultura de uma camada da população que não participa efetivamente da estrutura de poder da sociedade, e que existe em contraposição à cultura oficial. O problema pode ser descrito na sentença que deu origem a peça de teatro de Oduvaldo Viana Filha e Ferreira Gullar: "Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Ou seja:

1. Se subvencionado, o folclore perde a autenticidade, deixando de ser criação popular, que se mantém pelos próprios meios, para se transformar em algo oficial;

2. Se mantido como atração turística, haveria a seleção de apenas alguns grupos, nem sempre os melhores, que passariam a ser uma espécie de figurinhas de presépio, fazendo o show pelo show, sem nenhuma preocupação com a sua identidade cultural, e condenados a permanecer dentro de seus papéis decorados de marcação teatral preestabelecida, porque qualquer alteração desagradaria os empresários;

3. Se apenas fotografado, filmada, gravado ou transcrito em livros (documentado, enfim) se tornaria peça de museu, material inerte, que seria colocado ao lado de osso de dinossauros - o que contraria a definição, que é coisa viva e não matéria morta que se pendura na parede;

4. Se viesse a concorrer com a indústria cultural, através de programas de rádio, televisão, teatro, disco, cinema ou livro, teria que se sujeitar aos ditames da moda para se impor no mercado- e seria tudo, menos folclore;

5. Seu aproveitamento para o teatro, a música e a coreografia moderna o desfigurariam totalmente, transformando-o numa caricatura conforme já se pode ver através de grupos para - folclóricos existentes aqui em Minas Gerais.

6. Finalmente, a solução mais coerente é deixar o folclore seguir a dinâmica que as relações sociais lhe imprimem, pois como disse o lúcido Hermilo Borba Filho: "O povo é dono do espetáculo e pode transformar o folclore da maneira que quiser".

A ingerência do Estado, que defendo, deve se limitar a não permitir que grupos e entidades atuem, interferindo direta ou indiretamente para condicionar ou direcionar os rumos dos fatos folclóricos.


(   (1) Trabalho apresentado no NP17 – Núcleo de Pesquisa Folkcomunicação, XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05. setembro.2002. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA – 1 a 5 Set 2002

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